segunda-feira, 6 de dezembro de 2010

Revolução Republicana

A Revolução Republicana e a evolução do regime até à sua queda em 1926
António Bica 
Desde que, no século 18, se procurou generalizadamente submeter à crítica da razão o que se tinha por imutável e indiscutível, o poder dos reis, que até então era absoluto, indiscutível e ungido pelo poder religioso, e passou desde então a ser questionado, deixando de se aceitar que o poder de governar se legitimasse pela alegada vontade de Deus interpretada pelas estruturas religiosas.
Os que então questionaram a legitimidade, assim entendida, do poder dos reis, consideravam que todos os homens são iguais em direitos e deveres, propondo que se racionalizasse a legitimação do poder político, isto é o poder de decidir sobre o que diz respeito a todos, passando a defender que esse poder devia ser conferido pela vontade maioritária dos cidadãos expressa livre e periodicamente.
Isso é a democracia, que implica a liberdade de pensamento e de o exprimir pelos meios possíveis: reunião, manifestação, escrita, imagens e outros meios.
Então, nos fins do século 18 e princípios do 19 ( em Portugal na primeira metade do 19), não houve condições políticas para se eliminar de vez o poder dos reis, que, sendo hereditário, não resulta da escolha livre e periódica dos cidadãos, com isso não se respeitando completamente a democracia.
Assim mantiveram-se, em quase todos os países da Europa, durante o século 19, as monarquias, embora o poder dos reis fosse fortemente limitado pelas constituições. Em 1910,só a França e a Suíça tinham regimes republicanos.
Em Portugal, nos primeiros anos do século 20, o rei, então D. Carlos, subvertendo a Constituição em vigor, nomeou chefe do governo João Franco, que passou, sem programa de governo, com assentimento do rei, a governar o país autoritariamente em 1906, sem respeitar as liberdades democráticas básicas, fundamentalmente o direito de opinião e da sua expressão livre.
Isso fez crescer a vontade de acabar com a monarquia e alargar a influência do Partido Republicano nas maiores cidades do país e levou os partidos monárquicos ao descontentamento e a desinteressar-se de defender o poder régio.
 A consequência foi a queda da monarquia em 5 de Outubro de 1910, com o sangrento episódio da morte de D. Carlos em 1908 no Terreiro do Paço, sem que os partidos monárquicos a tivessem defendido. Portugal tornou-se então a terceira república europeia.
A revolução republicana de 5 de Outubro de 1910 aprofundou, em Portugal, a democracia, acabando com a dinastia de Bragança e com a atribuição ao rei do direito de exercer por herança o poder público, mesmo que limitado.
Mas a democracia não se conquista para sempre. Mantém-se por combate político permanente, nunca acabado, com avanços e recuos por vezes muito grandes, como foi o regresso do autoritarismo em 1926 que levou por 48 anos ao chamado Estado Novo e a reconquista da democracia com o 25 de Abril sob forma bem mais aperfeiçoada do que a do regime republicano de 1910.
O Partido Republicano Português, embora anterior ao Ultimato inglês, em 1890, que humilhantemente pôs fim à reclamada soberania portuguesa sobre as terras africanas entre Moçambique e Angola, que a Inglaterra anexou para constituir a sua colónia da Rodésia (hoje os países independentes Zâmbia e Zimbábuè), ganhou então projecção e tantos adeptos por se ter consequentemente oposto à sua aceitação pelo regime monárquico, que, em 31 de Janeiro de 1891, levou à falhada tentativa de proclamação da República no Porto, a que se seguiu forte repressão, incluindo contra os jornais republicanos frequentemente apreendidos e processados.
Desde então o apoio do povo urbano, especialmente em Lisboa e no Porto, foi crescendo. Para o Parlamento foram sendo eleitos cada vez mais deputados republicanos. A Câmara Municipal de Lisboa passou a ser republicana e em muitas outras havia cada vez mais vereadores republicanos. Os jornais republicanos passaram a ter  cada vez mais leitores.
Em contraste o regime monárquico afundava-se em negociatas entre elas o monopólio do tabaco e a administração do Crédito Predial Português e desprestigiava-se com os escandalosos adiantamentos à Casa Real, nunca reembolsados, especialmente a favor de D. Carlos.
Com o distanciamento do povo urbano, nomeadamente os operários, os trabalhadores dos serviços, os funcionários públicos de base, criaram-se condições favoráveis à revolução republicana. Os mais activos dessas camadas sociais integraram a Carbonária organizada secreta e hierarquicamente, devendo cada membro ter arma e ser capaz de a manejar para lutar pela implantação da República quando fosse tempo.
As camadas cultas (médicos, advogados, engenheiros, militares, jornalistas, professores, escritores, estudantes, artistas e outros), cada vez mais desiludidas com a monarquia, agrupadas nas lojas maçónicas, foram aumentando o número dos apoiantes do Partido Republicano Português.
Estavam criadas as condições para a revolução republicana.
O núcleo revolucionário organizado para actuar na noite de 3 para 4 de Outubro, composto por militares da Marinha e do Exército e integrantes da Carbonária, chefiado por, entre outros, Miguel Bombarda, prestigiado médico e professor de medicina, e o almirante Cândido dos Reis, descoordenou-se em consequência da imprevisível morte de Miguel Bombarda assassinado por um alienado no Hospital psiquiátrico de Rilhafoles, hoje Hospital Miguel Bombarda, pouco antes da hora marcada para o início da acção revolucionária e do mau funcionamento das comunicações com os navios da Armada no Tejo onde havia núcleos revolucionários e os quartéis de Artilharia 1 e de Infantaria 16. O almirante Cândido dos Reis, julgando a acção revolucionária perdida, suicidou-se. Os capitães de Artilharia 1 que  haviam saído com destacamento de militares apoiantes da revolução, convencidos de que o levantamento revolucionário militar fracassara, decidiram regressar ao quartel com os militares que comandavam. Na Rotunda, onde hoje está a estátua do Marquês de Pombal, Machado dos Santos, com pouco mais de 30 anos, comissário naval, comandando cerca de 40 carbonários, dispondo de alguma artilharia, manteve corajosamente a luta. A notícia de que a revolução republicana estava na rua fez afluir à Rotunda o apoio popular. Em algumas horas eram mais de 500 os apoiantes armados  prontos a dar a vida pela revolução e outros tantos prontos a combater esperando que lhas dessem armas.
Apesar da descoordenação, os navios da marinha militar que aderiram à acção revolucionária não deixaram de agir, tendo atingido o Palácio das Necessidades, onde vivia a família real. O quartel da Marinha de Alcântara, bairro operário de Lisboa, saiu em defesa da revolução. E, em vários pontos de Lisboa, grupos de civis armados dificultavam às tropas leais à Monarquia a repressão da revolução.
O rei D. Manuel II, convencido de que a monarquia chegara ao fim, embarcou para a Inglaterra depois de breve passagem por Gibraltar.
Em 4 de Outubro, nas vilas próximas de Lisboa, Loures, Almada Barreiro e Moita, foi proclamada a República. Em Lisboa o cessar fogo de 1 hora a pedido do encarregado de negócios alemão para evacuar os cidadãos alemães apressou a desmobilização das tropas monárquicas estacionadas no Rossio que, sem convicção, se opunham aos republicanos. Vendo a bandeira branca, tomaram-na pelo fim definitivo dos combates e passaram-se para as forças republicanas. A revolução triunfava.
Na manhã de 5 de Outubro de 1910 a República Portuguesa foi proclamada por José Relvas da varanda da Câmara Municipal de Lisboa. O regime monárquico chegara ao seu fim depois de longa vida de cerca de cerca de 850 anos.
Seguiram-se as medidas políticas esperadas:
  A lei do Divórcio de 3 de Novembro de 1910; a lei  de 20 de Abril de 1911 de separação do Estado da Igreja; a eleição em 28 de Maio de 1911 da Assembleia Constituinte para dotar o novo regime de Constituição; o Registo Civil obrigatório em 1911;  medidas de saneamento das finanças públicas comprometidas pelos  sucessivos empréstimos pelos governos monárquicos que levaram a Inglaterra e a Alemanha a tentar partilhar em 1898 as colónias portuguesas,  tendo o orçamento do  Estado de 1913/1914 apresentado saldo positivo.
O voto universal para todos os cidadãos, que havia sido defendido em 1891 pelo Partido Republicano no seu programa,  não passou de promessa. A nova lei eleitoral era quase tão elitista como a do regime monárquico.
Às questões sociais o regime republicano, que tinha beneficiado do apoio dos operários, dos empregados e dos artesãos para a sua implantação, prestou escassa atenção, se alguma. Em Novembro de 1910 em Lisboa foram declaradas 14 greves, incluindo dos trabalhadores dos eléctricos (transportes públicos). Pelo decreto de 6 de Dezembro de 1910 o governo regulou o direito de greve, que sempre havia sido negado pela monarquia, tendo os sindicalistas e os anarquistas classificado a lei como «decreto-burla». Em Janeiro de 1911 houve novo surto de greves contra que a Carbonária promoveu grande manifestação em Lisboa. Em Janeiro de 1912 houve greve dos trabalhadores rurais em Évora seguida de greve geral em Lisboa e noutros pontos do país. Em Maio e Junho de 1912 houve greve dos trabalhadores dos transportes públicos de Lisboa (eléctricos).  A partir de então a relação entre o regime republicano foi muito conturbada. Pouco foi feito para melhorar as difíceis condições de vida das largas camadas sociais mais pobres, defendendo o regime que, tendo a implantação da República sido obra de todos, lhe competia não favorecer mais as camadas sociais mais pobres, assim se abstendo de promover o necessário melhoramento das duras condições de vida delas. Deste modo se foram divorciando do regime republicano o povo mais desfavorecido e as correntes anarquistas e sindicalistas amalgamadas no que foi designado por anarco-sindicalismo.
Mas as nuvens bélicas anunciadoras da terrível tempestade que foi a 1ª Grande Guerra de 1914/1918 acastelavam-se. Em 1912 a Inglaterra e a Alemanha iniciaram negociação para a partilha das colónias portuguesas. Os jornais alemães, em 1914, pouco antes do início da guerra, anunciavam que brevemente a Alemanha ocuparia Angola. Depois de iniciada a guerra o exército alemão atacou no sul de Angola pelo rio Cunene a partir da então colónia alemã do Sudoeste Africano, e no norte de Moçambique a partir do Tanganica (actual Tanzânia), então colónia alemã, pelo rio Rovuma, tendo ocupado Quionga, a sul do Rovuma, junto à sua foz, até ao fim da guerra. Não houve oposição no país ao envio do exército para defender as duas colónias, tendo-se conseguido conter nelas o avanço alemão.
 Mas os republicanos preocuparam-se com o fim da guerra e o receio de que na conferência de paz que se lhe seguisse as colónias portuguesas fossem usadas como moeda na negociação. Quando a sorte da guerra era mais indecisa e a Inglaterra mais pressionou Portugal para declarar guerra à Alemanha, os republicanos no poder (Afonso Costa) acederam em 1916 a declarar guerra à Alemanha para defender as colónias portuguesas com apoio dos republicanos que se opunham a Afonso Costa, à excepção de Brito Camacho e Machado dos Santos, o herói da Rotunda a quem em grande parte se devia a vitória da revolução republicana.
 Foi decisão que se veio a revelar decisiva para a manutenção da soberania sobre as colónias portuguesas, mas desastrosa para o regime republicano, apesar de o governo ter então conseguido  apoio popular à entrada na guerra e de mesmo o rei D. Manuel II ter exortado à participação de Portugal nela.
 O desenvolver da guerra obrigou a enormes despesas públicas, levou a graves falhas no abastecimento de bens essenciais em consequência da desorganização dos transportes internacionais, a grande inflação com descontrolada subida dos preços, à chegada das notícias dos muitos mortos na frente militar. Isso trouxe o descontentamento popular.
A subida constantes do preço dos bens de primeira necessidade agravou a agitação social; os protestos contra a censura à imprensa decretada por razões militares mobilizaram os que, mesmo republicanos, se opunham ao governo; a propaganda antimilitarista, que era popular por estarem a morrer cada vez mais soldados na guerra, foi habilmente aproveitada pelos meios monárquicos, os integralistas proto-fascistas e os católicos que se opunham à República.
 Assim engrossou o descontentamento entre o povo. As greves sucederam-se. Em 1917 fizeram greve os trabalhadores dos Correios e Telégrafos, por 14 dias, seguida de greve geral em Lisboa e arredores e houve assaltos movidos tanto pela população com fome em consequência do constante aumento dos preços como por grupos organizados para pôr em causa o poder republicano.
 A fragilização do governo de Afonso Costa levou Sidónio Pais, com apoio de muitos republicanos e de católicos e monárquicos, sem oposição popular, a derrubá-lo pela força em 8 de Dezembro de 1917, assumindo poderes ditatoriais e o propósito de suspensão de todos os jornais que criticavam o governo sidonista e de ilegalização do Partido Democrata republicano. Foi a primeira manifestação em Portugal da deriva política anti-democrática da burguesia, na sequência do descalabro financeiro económico e social causado pela 1ª Grande Guerra. Há todavia que creditar a Sidónio Pais ter, pelo decreto de 11 de Março de 1918, instituído o sufrágio universal (alargado a todos os cidadãos), invocando para isso o programa do Partido Republicano de 1891, embora  não tivesse tido efeito senão por escassos meses, alterando também a lei de separação do Estado da Igreja Católica e restabelecendo relações diplomáticas com o Vaticano. A hostilidade entre os republicanos e Sidónio Pais levou os monárquicos a ocupar grande espaço na organização do poder.
 O descontentamento popular com o poder  agravara-se: Na guerra houve grande mortandade nas trincheiras da Flandres causada pela ofensiva alemã de 9 de Abril de 1918.De Setembro a Dezembro de 1918 a gripe pneumónica matara mais de 54.000 pessoas. A matança em Lisboa, em 16 de Outubro de 1918, em que foi assassinado o proeminente republicano Visconde da Ribeira Brava, de 6 presos políticos, quando com mais 147 eram conduzidos de noite sob escolta de 240 guardas despropositadamente acompanhados com toque de cornetas e tambores,   pela Rua Serpa Pinto, fez criar fortes suspeitas de envolvimento de monárquicos na ocorrência. Os distúrbios com assaltos movidos pela fome e também para criar instabilidade política, como o assalto com destruição à sede da Maçonaria em 6 de Dezembro de 1918, multiplicaram-se.
Em consequência o regime ditatorial sidonista, que acolheu muitos monárquicos e católicos, estava a tornar-se insustentável, o que era sentido pelos militares conservadores, especialmente os monárquicos, que organizaram pelo país Juntas Militares com o objectivo de tentar restaurar a Monarquia. Em 14 de Dezembro de 1918 Sidónio Pais foi morto a tiro na estação do Rossio, em Lisboa, por José Júlio da Costa, antigo sargento do exército, que fizera a guerra contra os alemães. Sidónio Pais tentou pôr em prática em Portugal uma das primeiras tentativas de uma significativa fracção da burguesia europeia para governar sem se submeter ao controle democrático dos cidadãos.
 Com a morte de Sidónio Pais desapareceu o sidonismo. Logo em 19 de Janeiro de 1919 a Junta Militar do Norte proclamou a restauração da Monarquia, tendo sido seguida por todo o norte até ao Douro, com excepção de Chaves, mas pouco tendo passado do Douro para baixo. O regime de violência que impôs ficou conhecido por Traulitânia por se ter caracterizado por grande violência sobre os presos políticos e por perseguições e vinganças sobre os adversários.
Em Lisboa os militares monárquicos, sem apoio popular, foram na madrugada de 23 de Janeiro de 1919 para  Monsanto e daí bombardearam a cidade. A mobilização popular supriu a falta de meios militares e em poucas horas bateram as forças monárquicas, que se renderam no dia 24.
 Perante o descalabro da tentativa de assalto ao poder em Lisboa os monárquicos do norte deixaram-se bater facilmente pelos republicanos, tendo acabado em 15 de Fevereiro a tentativa restauracionista monárquica de 1919.
Os monárquicos, os católicos, os integralistas anti-democráticos proto-fascistas, os republicanos descontentes, os grandes proprietários de terras e os maiores industriais e banqueiros vieram a conseguir, em 1926,  mobilizar apoio militar para derrubar o regime republicano sem que as camadas populares, descontentes com a despreocupação do poder republicano em relação ao aprofundamento da democracia e à sorte dos mais pobres, se lhe opusessem.
 Em 28 de Maio desse ano o regime caiu substituído por ditadura militar que progressivamente evoluiu para o controle político do Estado por Salazar, chamado de Coimbra para sanear as finanças públicas desequilibradas pela participação de Portugal na 1ª Grande Guerra e pelo descontrole financeiro dos primeiros anos da ditadura militar, apesar das sucessivas e numerosas tentativas falhadas dos republicanos, nomeadamente de muitos que  haviam apoiado a sublevação militar de 28 de Maio de 1926, para repor o regime democrático.
Apesar de Salazar ter sido em Coimbra fundamentalmente social-democrata cristão seguidor da linha política traçada nas encíclicas do papa Leão 13, em pouco tempo adoptou pragmática e hábil prática política de direita conservadora favorável aos regimes fascistas europeus (fascismo italiano e nazismo alemão) com objectivo de manter o seu poder pessoal nas complexas condições de política interna decorrente das múltiplas forças e correntes políticas que  haviam derrubado o regime em 1926 e externa sequentes à grande crise financeira e económica iniciada em 1929, à guerra civil em Espanha, à 2ª Segunda Grande Guerra e, na sua sequência, à afirmação pela ONU do princípio da auto-determinação dos povos sujeitos a domínio colonial e dos princípios  políticos democráticos que levaram Portugal à desastrosa guerra colonial de 1961 a 1974.

A queda do regime republicano deveu-se em grande parte a não ter promovido melhores condições de vida para as camadas sociais mais desfavorecidas nem aprofundado a democracia. E pode, a esta distância histórica, pôr-se a questão: A pesada herança colonial, depois da independência do Brasil no início do século 19, não terá sido para Portugal, tendo em conta a sua dimensão e o atraso da sua economia, a causa do atraso do seu desenvolvimento político, social e económico?

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