segunda-feira, 6 de dezembro de 2010

A propósito da viagem a Cuba

A propósito da viagem a Cuba

António Bica


Como construir sociedades humanas mais justas?
Em viagem a Cuba em 2007 pareceu-me, pelo que vi, li e falei com habitantes, que o país resolveu no essencial e a nível considerável bom os problemas de educação e saúde, que são gratuitos para toda a população. Os crimes violentos são raros, havendo razoável segurança nas ruas, mesmo de noite.
A cidade de Habana tem 2,3 milhões de habitantes. O alojamento é encargo pequeno (até 5% do salário mensal) e as necessidades básicas de alimentação são asseguradas por uma quota alimentar (por pessoa) vendida a preço baixo.
Asseguradas as necessidades básicas da população (alojamento, alimentação, saúde e educação sendo estas a nível bom) não restam aos cubanos grandes recursos para outras despesas. São poucos os carros e, dos que há, um bom número tem 20 ou 30 anos. Apesar disso a frota de taxis parece suficiente. Muitas casas aparentam pelo exterior precisar de pintura e de reparação.
A impressão colhida é de sociedade remediada e fraterna com as necessidades básicas resolvidas a nível muito mediano, sem grandes desníveis. É grande o contraste com o que se conhece da generalidade dos países da América Latina, onde muitas crianças vivem ao abandono, há muita criminalidade violenta e a riqueza e a ostentação dos bairros das elites se exibe ao lado da flagrante miséria das favelas, dos morros, dos bairros de lata.

As dificuldades

Apesar dos Estados Unidos da América do Norte boicotarem quanto podem a economia cubana, o país resiste. A preocupação com a justiça social do regime político e a forte base ética assente na vida modesta dos dirigentes legitimam o regime aos olhos da maioria da população. Mesmo em períodos difíceis, como o que se seguiu a 1990 com o colapso dos países socialistas europeus, tendo o produto interno bruto caído então 35%, a unidade à volta dos dirigentes políticos não foi destruída. A direcção política soube dar resposta às graves dificuldades económicas, abrindo ao investimento estrangeiro com empresas em parceria com o Estado Cubano sendo metade do capital de cada parte e admitindo que a população crie pequenas empresas familiares que não contratem outros trabalhadores. A economia cubana retomou com essas medidas o crescimento, procurando a política cubana manter o princípio de não haver cubanos a comprar  força de trabalho a outros cubanos. Por essa razão o regime não autoriza que as empresas de cubanos recorram a outro trabalho que não o familiar.

Maior flexibilidade

Esta restrição impede que os cubanos com maior iniciativa e criatividade impulsionem mais o desenvolvimento económico da sociedade. Estima-se que numa sociedade cerca de 10% da população tem boa capacidade de iniciativa, de criatividade e de gestão, enquanto percentagem semelhante, no extremo oposto, não tem capacidade para governar a sua vida e produzir para as suas necessidades precisando de receber apoio da sociedade. Os restantes, cerca de 80%, são normais trabalhadores, muitas vezes excelentes, desde que bem enquadrados em organização produtiva. Dificultar que num país os 10% da sua população com criatividade, capacidade de iniciativa e de gestão desenvolvam as suas capacidades em actividades diversas, nomeadamente económicas, desde que respeitadas regras básicas de justiça, solidariedade social e equidade, faz diminuir a eficiência geral da sociedade em todos os campos, em especial no económico. A compra de força de trabalho e a consequente possibilidade de exploração económica, não pode ser erigido em tabu quando se pretende construir uma sociedade mais justa. Por medidas legislativas e outras é possível estabelecer normas e práticas que garantam os direitos dos trabalhadores e a observância da regra básica de justiça: a cada um segundo o seu trabalho, prestando-se o necessário e possível apoio aos que dele necessitam.

A separação, no fim da Segunda Grande Guerra, da Alemanha em dois Estados, um a República Democrática Alemã organizado segundo princípios tidos por socialistas, outro a Alemanha Federal segundo as regras do capitalismo, tornou claro que grande número de trabalhadores da República Democrática Alemã teria ido trabalhar para a Alemanha Federal, onde os salários eram mais elevados, se não tivessem sido estabelecidas barreiras intransponíveis na fronteira entre os dois Estados, incluindo na cidade de Berlim (o chamado muro de Berlim).
Impõe-se concluir que a média dos trabalhadores prefere ganhar mais, mesmo sendo explorada, do que, hipoteticamente não o sendo, ganhar menos.

As sociedades humanas são complexas

Há que reflectir se é possível com eficiência, num Estado, regular centralmente toda a vida social, cultural e económica como se tentou sem êxito na União Soviética e nos países do “socialismo real”.
Uma sociedade humana é demasiado complexa para poder ser entendida por uma parte de si mesma em termos de essa parte ser capaz de dirigir o seu evoluir e funcionamento sem contradições.
Até agora as sociedades humanas evoluíram de forma não dirigida. O seu progresso tem resultado de leis que no último século e neste se têm procurado determinar.
Mas estamos longe de conhecer todos os complexos mecanismos do funcionamento e do evoluir das sociedades humanas e provavelmente nunca se conhecerão completamente, não obstante o contínuo progresso nesse sentido.
É desejável que as sociedades evoluam sem roturas causadoras de grandes prejuízos e sofrimentos.
Não sendo possível determinar completamente o evoluir e o funcionamento das sociedades por desconhecimento da sua complexidade, a sua organização terá fundamentalmente que se procurar facilitar os mecanismos de autocorrecção económica e social de maneira que as alterações se tendam a processar de modo gradual e imediato, ou quase imediato, com o mínimo de intervenção da autoridade pública e consequentemente sem roturas.
A autoridade pública terá que intervir fundamentalmente para, pela investigação, aprofundar o conhecimento das leis que regulam o funcionamento e o evoluir das sociedades e, na base desse conhecimento, aperfeiçoar continuamente os mecanismos sociais de autocorrecção. Só nos casos em que os mecanismos de autocorrecção não resolverem disfunções sociais e económicas é que se tornará preciso intervir para procurar resolvê-las e introduzir novos mecanismos de autocorrecção que, no futuro, solucionem o mesmo tipo de contradições.

Uma sociedade humana é assimilável a corpo humano vivo. À inteligência, que é a função superior do corpo, não compete regular cada uma das suas múltiplas e complexas funções, cujas leis a inteligência em grande parte desconhece. A função da inteligência em relação ao corpo é a de procurar resolver os problemas de funcionamento e desenvolvimento que os automatismos biológicos não são capazes de resolver. A inteligência de cada homem não se ocupa do funcionamento dos diferentes órgãos do corpo (coração, aparelho digestivo, pulmões, rins, glândulas, etc.). Se for necessária água no organismo, desencadear-se-á alarme da sede que vai obrigar a inteligência a perceber que tem que lhe ser fornecida água. O coração funciona sem que a inteligência se ocupe dele. Mas se surgem dores provenientes do seu deficiente funcionamento, a inteligência actua de modo a que haja intervenção (remédios, dieta, etc.).

O aceitável  e o inaceitável

A compra por um indivíduo da força de trabalho de outro não é necessariamente fonte de injustiça inaceitável, se for regulada por normas e outras formas de controle capazes de assegurar o razoável equilíbrio das prestações mútuas.
O que não é aceitável é o imposto pelas grandes empresas transnacionais sob o comando do governo dos Estados Unidos da América do Norte: O neo-liberalismo global está a tornar os países ricos cada vez mais ricos e os pobres cada vez mais pobres, e, nuns e noutros, os indivíduos ricos cada vez mais ricos enquanto a miséria, o crime, a insegurança e a poluição crescem.
Cuba está a procurar construir uma sociedade alternativa à dominante no mundo de hoje. São de saudar a sua vontade e a sua determinação. O caminho que está a seguir merece reflexão e eventualmente ajustamentos.

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