segunda-feira, 6 de dezembro de 2010

Origem de Lafões

Sobre a origem dos nomes Cambarinho, Malhadas de Cambarinho, Vouzela e Fonte Juiz

António Bica

Quando, com menos de 10 anos, guardava  gado na serra da Penoita, no extremo norte da Serra do Caramulo perto das Malhadas de Cambarinho e ia, a 5 de Agosto, a pé, á  Senhora das Neves a Covas de Fornelo do Monte, atravessando as Malhadas de Cambarinho que é baldio de Joana Martins e de Adsamo da freguesia de Ventosa, onde nasce, na serra da Penoita, o rio Alfusqueiro, muitas vezes me perguntei porque é que as Malhadas de Cambarinho têm esse nome se estão tão longe da povoação de Cambarinho, tendo pelo meio, a separá-los, a extensa freguesia de Cambra. Entre os dois topónimos, Malhadas de Cambarinho e Cambarinho e também Cambra, há todavia relação que é o rio Alfusqueiro.

Os nomes Cambra e Cambarinho

O que têm de comum é situarem-se na bacia do rio Alfusqueiro, que nasce nas Malhadas de Cambarinho, passa por Cambra, freguesia do concelho de Vouzela, tem como afluente na margem esquerda pequeno ribeiro que passa em Cambarinho, corre junto a pequena aldeia chamada também Cambra, nas proximidades do Préstimo, e vai desaguar no rio Águeda.
 Este elemento comum, o rio Alfusqueiro, não indicia relação com a similitude destes nomes. A relação é geográfica, situando-se Cambra na margem direita do rio Alfusqueiro a 4 Km a nascente de Cambarinho que se situa junto a pequeno afluente do rio Alfusqueiro a 8 km a poente das Malhadas de Cambarinho, dois pequenos planaltos a cerca de 800 m de altitude na Serra do Caramulo, onde nasce o rio Alfusqueiro. A outra Cambra junto ao rio Alfusqueiro situa-se quase no fim do curso do rio Alfusqueiro, junto ao Préstimo.
 De um documento do início do século décimo primeiro, ano de 1002, transcrito sob o nº 190 nos Diplomatae et Chartae dos Portugaliae Monumenta Historica, citado por Gama Barros no Tomo XI da História da Administração Pública em Portugal, resulta a raiz comum destes nomes ao referir “Villa Cercosa subtus mons gabro discurrente rivulo cambar territorio alaphoen”(Cercosa abaixo do monte Gabro vertente do rio Câmbar no território de Lafões).

A única povoação chamada Cercosa, em Lafões, é a aldeia deste nome, na freguesia de Campia, concelho de Vouzela, que fica na proximidade do rio Alfusqueiro. Os dicionários corográficos não indicam para todo o país outra povoação chamada Cercosa, senão a que se situa a cerca de 9 Km de Mortágua e dá nome à freguesia.

Gama Barros faz os seguintes comentários ao documento, ao procurar identificar o lugar:
«No distrito de Viseu há uma freguesia e um lugar com o nome de Cercosa. A freguesia é no concelho de Mortágua; o lugar no de Oliveira de Frades, freguesia de Campia. O rivulo Cambar supomos ser o rio Cambra, afluente do Caima e este do Vouga.»

Gama Barros não conseguiu fazer com segurança a localização da Cercosa a que se refere o documento. Mas o documento é preciso: situa-se no território de Lafões, no monte Gabro, junto ao rio Câmbar.
Cercosa da freguesia de Campia, actualmente do concelho de Vouzela, é a única povoação com este nome na região de Lafões. Por outro lado o documento refere que se situa no monte Gabro. Este monte é o que que se designa hoje por Serra do Ladário ou das Talhadas.
 Não há dúvida de que o monte Gabro corresponde à Serra do Ladário, porque o documento 87 do ano 964 dos referidos Diplomatae et Chartae menciona a doação de Pinitello (talvez Spindelo), situado entre a Villa de Ceterina (Cedrim) e a Villa de Idolo  (Ribeiradio), junto ao rio Vouga, próximo do monte Gabro. Por outro lado o topónimo Paredes de Gravo deriva seguramente do nome do monte Gabro, como bem referiu o Dr. Mário Loureiro no jornal “Notícias de Vouzela”, edição de 13/03/1998.  
Pode-se assim concluir que o rio Câmbar a que o documento se refere é hoje designado por Alfusqueiro. O actual nome do rio é provavelmente de origem árabe ou arabizante e acabou por se impor fazendo esquecer a designação anterior, Câmbar, que é provavelmente de origem pré-romana.

Foi o rio Câmbar que deu nome às duas povoações chamadas Cambra, à beira das quais passa. Com efeito o testamento de Maria Rabaldes, de Março de 1147, transcrito no Livro Santo de Santa Cruz, ao referir-se a Cambra, actualmente do concelho de Vouzela,  refere «... et dent proinde sancte cruci medietatem de tota cambar, scilicet quantum inde ad me pertinet» (e dêem ao mosteiro de Santa Cruz metade de Cambra toda, que é quanto aí me pertence) .
 Por sua vez o rio seria designado, na sua nascente, na época romana, pelo seu diminutivo Cambarinum. A. Nazaré Oliveira em “A Albergaria de Reigoso”, texto publicado na Revista Beira Alta 1º e 2º trimestre de 2007, refere doação feita em 1159 pelo alcaide de Coimbra Rodrigo Pais e pela mulher Elvira Rabaldes ao mosteiro de Santa Cruz de Coimbra de Oliveira de Frades. Maria Rabaldes, talvez parente da Elvira Rabaldes, havia disposto a favor do mesmo convento de metade de Cambra. O rio Alfusqueiro nasce precisamente nas Malhadas de Cambarinho ou próximo delas. Daí o nome das malhadas.

O nome Vouzela

Quanto a Cambarinho, não fica  à beira do rio Alfusqueiro, mas a cerca de 1.500 m, junto a pequeno ribeiro sem nome que dele é afluente. Era uso na época romana designar-se os pequenos afluentes dos rios, sem nome próprio, pelos diminutivos dos rios para que corriam, bem como as cabeceiras destas. Este ribeiro designar-se-ia por Cambarinum, dando o nome à povoação que se situa junto a ela, que hoje se chama Cambarinho.

Do mesmo modo que o afluente do rio Câmbar ( hoje Alfusqueiro) que passa em Cambarinho era designado por Cambarinum e deu nome à aldeia de Cambarinho situada na sua margem, o afluente do rio Vauca (hoje Vouga) que passa em Vouzela era designado por Vaucella e deu nome à vila de Vouzela situada na sua margem. Erradamente a origem deste topónimo tem sido atribuída à situação da povoação entre os rios Vouga, que os romanos designavam por Vauca, e o que passa junto a Vouzela que modernamente é conhecido por Zela. Daí Vouzela.
 Mas esta explicação não tem fundamento. O nome Zela atribuído ao rio é recente e de origem pseudo-erudita, certamente inventado com base no nome Zela, onde hoje é a Turquia, local onde César travou batalha, que ficou conhecida por batalha de Zela, à qual se referiu, vangloriando-se, com a célebre frase: “Veni, vidi, vici” (cheguei, vi, venci). Assim fantasiosamente se passou a justificar o nome de Vouzela.
Em Agosto de 1994 foram, a meu pedido, inquiridos três naturais e residentes em Vila Nova,  freguesia de Ventosa, pelo Sr. Manuel Alberto Rocha Pereira, residente na Senra, Paços de Vilharigues, Vouzela: a Sra. Maria dos Prazeres Pereira, com 83 anos, Maria Isilda, conhecida por Conceição, com 90 anos, Arménio Carvalho, com 92 anos, estar nascidas e residentes em Vila Nova, Ventosa, Vouzela, lugar por que passa este rio. Todos afirmaram com segurança que só há cerca de 30 anos é que se começou a ouvir dizer que o rio se chama Zela, sendo sempre conhecido por corga ou rio de Vouzela.
Ora Vouzela que provavelmente nasceu na época romana, por se situar no entroncamento de duas estradas romanas, a que vinha da estrada Braga - Lisboa  e seguia para Viseu e a que, partindo de Vouzela, seguia pelas Termas para Castro Daire, Lamego e Chaves no local onde certamente foi estabelecida muda de cavalos para servir as comunicações do Império Romano) terá passado a ser designada pelo diminutivo Vaucella, que seria dado pelos romanos ao pequeno ribeiro afluente do Vouga junto do qual se situa. Esta é a origem mais provável do topónimo Vouzela.
Sobre o assunto diz Amorim Girão nas “Antiguidades Pré-Históricas de Lafões”:
«Para não falar já na suposta etimologia apresentada pelo Sr. Dr. Pedro A. Ferreira (Tentativa Etim-Topon), é vulgar asseverar-se que o nome desta vila provem de Vouga-Zela, por ficar na confluência dos dois rios assim denominados, ainda que nem uma nem outra coisa se verifique em boa razão.
Os romanos designavam o rio Vouga pelo nome Vacua, seguramente de origem pré-romana, e ao seu afluente que banha a vila de Vouzela passaram a designar pelo diminuitivo Vaucella, nome que ainda se encontra em documentos medievais e que deu Vauzella e depois Vouzella. O mesmo se verifica em Tua e Tuela, Mosa e Mosela, etc.. Vouzela se chamou também e chama ainda, com pequena alteração, um ribeiro confluente do Vouga, junto da sua origem.
            Foi nestas condições que o hoje erradamente designado rio Zela deu nome à povoação, e não os dois como geralmente se supõe. O mesmo facto pode ainda fundamentar-se no exemplo da povoação de Vouguinha, freguesia de Côta, cujo nome provém da circunstância de ficar situada sobre um pequeno afluente do Vouga ou mesmo junto do seu curso superior, que muitas vezes se designa pelo diminutivo correspondente. Cf. Mondego e Mondeguinho».
Nas Inquisições de D. Afonso III feitas em 1258, ao indicar os bens que pagavam direitos ao rei em Vouzela é referido: «O mesmo João do Domingos jurado disse que metade da rua de Vouzela conforme divide a estrada no caminho para a ponte do rio de Vouzela contra a Igreja é toda da Igreja de Vouzela.»
Nas mesmas Inquirições, ao referir-se os direitos do rei em Santa Ovaia, ao fundo da freguesia de Ventosa, junto ao mesmo rio ou ribeiro, diz-se: «João Ramires disse que os homens de Santa Ovaia tomam o reguengo do Castelo e passam o ribeiro, sendo do ribeiro de Santa Ovaia até ao Castelo tudo reguengo. Vicêncio do Fernando, de Vouzela, confirmou e acrescentou que o reguengo passa para além do ribeiro contra Santa Ovaia.»
Não há pois dúvida de que o rio que nasce em Adsamo, na freguesia de Ventosa, passa em Vouzela e desagua no rio Vouga não tinha nome na época da ocupação romana e nunca teve até hoje. Por isso nas citadas Inquirições foi designado por rio de Vouzela e as referidas pessoas inquiridas afirmaram que sempre o ouviram designar por corga ou rio de Vouzela.
            Também a vila de Vizela, no Minho, além da similitude do nome com Vouzela, tem origem idêntica. Vizela situa-se na margem de afluente do rio Ave, que se chama Vizela e se designaria na época romana por Avicella, o qual deu nome à vila que na Idade Média se chamava Avicella, como consta de documento transcrito nos Diplomatae et Chartae.
A adopção moderna do nome Zela é um caso curioso de denominação de um pequeno rio, que não tinha nome, tal como muitos outros na região e no país, com base em considerações pseudo-eruditas, classizantes, com o objectivo de forjar explicação “prestigiante” para a origem do topónimo Vouzela.

O nome Fonte Juiz

Por último há que referir o nome Fonte Juiz, no Vale do Cerro, na Penoita, extremo norte da Serra do Caramulo, nos limites da povoação da Touça, freguesia de Paços de Vilharigues, concelho de Vouzela, junto à estrema com os limites de Joana Martins da freguesia de  Ventosa.
Nele nasce espontaneamente água, embora na década de 1960 tenha aí sido feita pequena mina para melhor a captar. É essa nascente que sempre, desde que há memória, é conhecida por Fonte Juiz, não se conhecendo a origem do nome.
Não tem origem em ter pertencido a um qualquer juiz, porque sempre o terreno onde nasce foi baldio até à sua partilha em sortes, em 1923, pelos moradores da Touça. E desde essa partilha nunca pertenceu a quem fosse juiz. E se essa fosse a origem do nome chamar-se-ia Fonte do Juiz e não Fonte Juiz, como inequivocamente sempre se chamou.
Na sua situação junto à extrema do monte da povoação da Touça da freguesia de Paços de Vilharigues com o monte da povoação de Joana Martins da freguesia de Ventosa, que se situa a sul do monte da povoação da Touça, estará a origem do nome, podendo ter-se originado em antigo conflito entre os moradores das duas povoações (Touça e Joana Martins), do qual não resta memória, sobre os limites dos respectivos montes, que terá sido julgado no local, com reunião do tribunal junto à fonte que aí espontaneamente nasce.
Essa hipótese é reforçada pelo bem visível alinhamento de pedras sobre a cumeada que divide, pelo norte, o Vale do Cerro da encosta das Fontes Muitas, indiciador de antiga possível tentativa de demarcação do Vale do Cerro como terreno pertencente ao monte de Joana Martins.
A esse possível conflito poderá ter sido posto fim por  julgamento feito no local, provavelmente na Idade Média, quando ainda se usava o latim, língua em que julgamento se diz judicium, que, no genitivo, corresponde a judicii, que, evoluindo para português, terá dado juiz.
Não será caso único um nome em português derivar do genitivo da correspondente palavra em latim. A mais provável origem do nome Lafões  será  o genitivo do nome Lafo  de que provém também o nome do monte Lafão.

1 comentário:

  1. notabiliossima recensao historiografica do Ilustre Causidico e Interventor Civico ,Antonio Bica,revelando a suprema importancia das Epigrafias e das Origens,decantadas por vezes com o habitual saudosismo e panegirismo e hiopernacionalismo romanticista do rincao

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