segunda-feira, 6 de dezembro de 2010

O Irão está a revelar transformação política

O Irão está a revelar transformação política indiciadora de mudanças


António Bica

            A última eleição presidencial no Irão revelou estar o país politicamente activo, confrontando-se duas tendências: uma defensora dos valores religiosos, na concepção tradicional, receosa de mudanças e de abertura ao exterior, temerosa da influência das mulheres na vida pública e na economia, procurando manter a tutela religiosa sobre o regime e talvez reforçá-la; outra que quer modernizar o Irão, que as mulheres tenham no país função igual à dos homens, abri-lo ao mundo, aprofundar as instituições democráticas, reduzir e talvez acabar com a tutela político-religiosa sobre o regime.

            Como se sabe, o Irão foi, desde 1953, ano em que a CIA, em colaboração com os serviços secretos ingleses, derrubou o regime democrático então chefiao por Mossadegh, até 1979, em que o regime autocrático do Xá Reza Pahlevi foi derrubado por revolução popular, governado sob tutela dos EUA.
            Desde 1979 o Irão tem sido fortemente hostilizado pelos governos dos EUA. O actual presidente Obama baixou o nível de agressividade política, mas mantém-na.
            O movimento revolucionário iraniano que instituiu a república em 1979 fundou-se na luta contra a injustiça social do regime autoritário e repressivo do Xá e o domínio económico e a influência cultural dos EUA. Para melhor mobilização popular contra o Xá e a influência dos EUA foi, pelo movimento revolucionário, feito apelo aos valores religiosos xiitas tradicionais.
            Com a vitória da insurreição popular, as estruturas religiosas, que tiveram função de relevo na mobilização e no enquadramento populares contra o Xá, passaram a liderar o novo regime republicano.

            Como se sabe, o Irão é maioritariamente de religião islâmica xiita, que diverge da corrente maioritária sunita por sempre ter defendido que a liderança política e religiosa islâmica deve pertencer aos descendentes do profeta Maomé pela sua única filha, Fátima.
No Islão as lideranças política e religiosa sempre se confundiram sob a mesma chefia por a religião ter tido origem nos ensinamentos do profeta Maomé, que era simultaneamente chefe político e religioso dos que acreditavam na sua doutrina, que muito cedo se retiraram para a pequena cidade árabe de Medina, onde Maomé passou a ser simultaneamente chefe político e religioso.
Com a morte de Maomé, que deixou um único descendente, a sua filha Fátima, foi, entre os seus seguidores mais próximos, muito discutida a sua sucessão. Por não ter então descendente masculino, mesmo que neto, optou a maioria dos seguidores do profeta por escolher, para chefiar os crentes islâmicos, um de entre eles.
            A corrente minoritária não se conformou e defendeu que a chefia da comunidade dos crentes islâmicos, que passaram a designar por Umma, deveria caber aos descendentes masculinos do profeta Maomé. Quando o filho de Fátima, neto do profeta, Hussein, se tornou adulto, tendo havido escolha de novo chefe político e religioso dos crentes, Califa na designação árabe, os partidários de Hussein consideraram que não havia que fazer nova escolha por Hussein ser chefe político e religioso natural por direito hereditário.
O desentendimento deu origem a guerra entre os partidários de Hussein e do novo califa escolhido pela facção maioritária. Hussein foi derrotado e morto e massacrada toda a sua família na tentativa de eliminar definitivamente a corrente que defendia que só os descendentes do profeta têm legitimidade para liderar política e religiosamente a Umma, comunidade dos crentes.
            Esta corrente política e religiosa passou a designar-se por xiita, que, tendo embora sido muito enfraquecida por essa derrota e o massacre, retomou vigor no Irão, a antiga Pérsia, que, tendo antiga cultura própria, embora tenha aceitado o islamismo, se opôs tenazmente a ser dominada política e religiosamente pelo califado que teve sede primeiro em Damasco e depois em Bagdade.
            Porque foram chacinados todos os descendentes do profeta, os xiitas consideram que a liderança politica e religiosa da comunidade dos crentes, está desde então vaga até um dia, no fim dos tempos, ressurgir algum miraculosamete salvo descendente do profeta para finalmente repôr a legitimidade do poder político e religioso na comunidade dos crentes no Islão. É, curiosamente, um mito como em Portugal foi o de D. Sebastião a ressurgir em manhã de nevoeiro para animar os que não queriam a integração de Portugal na Espanha.
            O xiismo serviu assim os governantes do Irão que desse modo legitimaram a sua insubmissão política e religiosa ao califado de Bagdade.
            Até à vinda, no fim dos tempos, do chefe legítimo descendente do profeta, a liderança política e religiosa da comunidade dos crentes está, para os xiitas, vaga, não devendo por isso concentrar-se as duas lideranças numa só pessoa por só o descendente do profeta que há-de um dia vir ter legitimidade para isso.
            Assim, no xiismo, ao contrário do sunismo, o poder religioso não deve coincidir com o poder político, até que um dia ressurja um descendente do profeta.

            Com a revolução no Irão, em 1979, apesar da forte influência nela do poder religioso, não se assumiu ele como titular do poder político. Como a monarquia persa, com o último Xá derrubado em 1979, se havia politicamente submetido ao poder dos EUA, assim se descredibilizando, a revolução aboliu-a e institucionalizou o regime republicano que procurou legitimar com a sua actual Constituição, o que é revolucionariamente inovador no mundo islâmico, com definição do poder por eleições, por voto universal e periódico, de quem exerce o poder e reconhecimento da igualdade entre homens e mulheres em consequência do papel central da única filha, Fátima, na transmissão biológica do poder.

            Por a revolução de 1979 ter tido forte participação laica, a liderança religiosa, procurando opor-se à laicização da sociedade, recorreu a figura semelhante
à adoptada em Portugal, pela Constituição de 1976, com o Conselho da Revolução, para tutelar o regime e evitar que caísse em desvios.

            No Irão essa função tutelar passou a ser desempenhada por conselho de religiosos eleitos que designam um chefe. A corrente política que actualmente quer modernizar o Irão confrontou-se em 2009, nas eleições do presidente da República, com a corrente que quer manter o país amarrado aos valores religiosos tradicionais.
            A corrente inovadora não aceitou a derrota considerando que as eleições foram manipuladas e não livres. A que defende os valores religiosos tradicionais respondeu com repressão, que continua.

            Estão assim criadas condições para mudanças políticas no Irão. Quem vai ganhar o confronto nos tempos próximos não é seguro, podendo a força repressiva de que dispõem os tradicionalistas impor o seu domínio. Mas a prazo a sorte está lançada: os que se opõem à inovação e à abertura ao mundo estão seguramente derrotados. A tutela religiosa sobre a estrutura política actualmente definida no Irão por eleição universal dificilmente sobreviverá.

           


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