quinta-feira, 7 de abril de 2011

As próximas eleições

As próximas eleições, o PSD e o chamado PEC 4

António Bica

Em 11 de Março de 2011 não aconteceu só o terramoto do Japão, mas também em Portugal terramoto político com epicentro em Bruxelas. Nessa sexta-feira o primeiro ministro Sócrates negociou as medidas restritivas da despesa pública a aprovar com o orçamento do Estado para 2012, como foi recentemente previsto na União Europeia para todos os países que a integram para garantia de respeito por cada país das medidas fiscais de contenção do défice orçamental e da dívida pública.
Cavaco Silva, no discurso de posse dois dias antes, em 9 de Março, ressentido com o apoio do PS a Manuel Alegre seu adversário na eleição presidencial, tomou nisso pretexto para atacar o governo.
Quando Sócrates regressou de Bruxelas e anunciou que negociara o chamado PEC 4, Cavaco não se conteve e disparou contra ele. Queixou-se de que o primeiro ministro o não informara previamente dos termos das negociações em Bruxelas para as medidas fiscais restritivas no orçamento de 2012.
Foi o primeiro tiro. O PSD, desejoso de suceder ao PS em Belém, mas pensando abrir as hostilidades pelo verão, não deixou de responder ao sinal, anunciando opor-se ao PEC 4 negociado em Bruxelas pelos pesados sacrifícios que impunha aos cidadãos e por não ter sido previamente negociado no âmbito parlamentar, seguindo, neste argumento, a queixa de Cavaco: O governo não me informou.
Este argumento de falta de negociação interna prévia não é pertinente. Os países que integram a zona euro, ao ter aceitado negociar no início de cada ano, em Bruxelas, as medidas de contenção dos seus orçamentos de Estado para o ano seguinte, abdicaram do direito de definir  nos seus parlamentos as grandes linhas de controle orçamental por terem que ser definidas por negociação  prévia entre o governo de cada país e Bruxelas, no início do ano precedente ao do orçamento, portanto antes de o orçamento de Estado ser discutido em cada parlamento nacional.
O PSD, na sequência do anúncio da rejeição liminar no Parlamento do PEC 4 acabado de ser negociado por Sócrates em Bruxelas, não admitiu a substituição, em sede parlamentar, de algumas das suas medidas restritivas por outras que não deixariam de ser aceites por Bruxelas desde que o impacto orçamental fosse semelhante.
Alguns cidadãos de esquerda, embora de opinião com pouco ou nenhum acolhimento nos grandes órgãos de comunicação social, defenderam e esperaram que o PCP e o BE se abstivessem em conjunto na votação do PEC 4, evitando, sem se comprometerem com as medidas do PEC4, a queda do governo com imediata retracção do mercado na compra de dívida pública portuguesa  em consequência da rejeição liminar do PEC 4 acabado de acertar em Bruxelas, procurando, em contrapartida, negociar as medidas dele socialmente mais gravosas por outras menos duras.
Mas a provavelmente ilusória ideia do PCP e do BE de que, com a imediata queda do governo do PS, virão a beneficiar de significativo acréscimo de votos na eleição parlamentar sequente, não os deixou prever que poderão não alcançar suficiente votação, e o PSD e o CDS em conjunto poderão vir a formar governo com apoio parlamentar maioritário. Nesse caso ao socialmente gravoso PEC 4 sucederá outro pior.
Não demorou muito que o PSD mostrasse que com a sua rejeição do PEC 4 não quis mais do que responder ao ataque do Presidente da República, informando que respeitaria os objectivos do PEC 4 mas substituindo algumas medidas por outras. E, externamente, em 30 de Março de 2011, no jornal Americano Wall Street Journal, mostrou que por vontade do PSD as medidas orçamentais restritivas serão mais duras, esclarecendo nesse jornal a razão do voto contra o PEC 4: «Votámos contra, não porque se foi longe demais, mas porque não suficientemente longe.»
Internamente, em Portugal, o PSD, além de medidas avulsas demagógicas na procura de captação de votos nas próximas eleições como o fim de justa e necessária avaliação dos professores, procurou que o governo PS, em consequência da negativa reacção do mercado financeiro internacional à rejeição na Assembleia da República do PEC 4, chamasse a intervenção financeira europeia com o Fundo Monetário Internacional, que, quando é instado a intervir num país, assume a função de sombra do Ministério das Finanças impondo medidas financeiras draconianas.
O governo tentou evitá-lo, fundamentando-se com lógica em que, além de ser governo de gestão, tendo sido rejeitadas as medidas do PEC 4 negociadas em Bruxelas capazes de assegurar a estabilidade do mercado financeiro internacional, há que deixar ao governo que for empossado na sequência da próxima eleição parlamentar a negociação de medidas de restrição orçamental que substituam as rejeitadas, recusando-se a repetir a conhecida rábula histórica de Egas Moniz de corda ao pescoço a apresentar-se diante de Afonso VII de Leão e Castela  oferecendo-se para ser enforcado em vez de Afonso Henriques que faltara à palavra dada.
A rábula de Egas Moniz pegou em tempos cavalheirescos medievais. Mas neste tempo de economia monetarista especulativa, os bancos portugueses anunciaram, em 5 de Abril, que não comprariam os títulos de dívida pública portuguesa em próximas vendas deles. O governo vergou-se à imposição dos Bancos e em 6 de Abril anunciou que vai pedir o apoio financeiro europeu e do Fundo Monetário Internacional, que seguramente irão impor medidas orçamentais mais restritivas do que as previstas no PEC4. Entrarão em Portugal fazendo maior estrago social que o rejeitado PEC 4.
Neste drama, não tragédia, Portugal, que já passou na sua história de quase 900 anos por apertos bem mais graves, não se afunda, mas o povo que vive do trabalho vai ver reduzidos os rendimentos.
A intransigente defesa pelo actual governo da Alemanha do valor do euro para salvaguardar a riqueza monetária em mãos alemãs calculada em mais de 1,5 milhões de milhões de euros em aplicações financeiras sobretudo na zona euro não autoriza a solução, classicamente seguida pelos países, de emissão de moeda na zona euro com a sequente inflação e correspondente redução do valor dos salários, pensões, rendas, aplicações financeiras e demais rendimentos fixos.
Como essa medida desvalorizaria cerca de 1,5 milhões de milhões de euros alemães aplicados em aplicações financeiras, o governo alemão quer que, em vez disso, sejam reduzidos nominalmente os salários, as pensões, o subsídio de desemprego e as demais prestações sociais, o que evitará a desvalorização dos investimentos financeiros dos bancos, das empresas e dos particulares alemães em consequência da inflação que a emissão de moeda geraria.
O governo do PS, em gestão desde a dissolução da Assembleia da República, tentou solucionar a necessidade de financiamento público por venda de títulos de dívida a prazo curto (entre um ano e dois), que têm maior procura a juros mais baixos, para que não se tornasse indispensável o recurso à intervenção da Europa e do Fundo Monetário Internacional durante os dois meses (Abril e Maio) de gestão corrente dos negócios públicos por este governo. Mas a subida dos juros desses títulos e a atitude dos banqueiros portugueses não deixaram caminho para outra solução senão a intervenção financeira da União Europeia através do Fundo de Estabilização Financeira e do Fundo Monetário Internacional.
Na campanha e pré-campanha eleitoral vamos assistir à habitual guerra política de imputação por cada partido aos outros, nunca também a ele mesmo, das nefastas consequências para o povo trabalhador das inevitáveis medidas restritivas orçamentais. Os cidadãos assistem e, submersos pela falácia dos argumentos e as dificuldades da vida, cada vez mais votam em branco ou nulo, ou, sobretudo as gerações muitos pequenas no 25 de Abril ou nascidas posteriormente, não cumprem o dever cívico de votar.
Esta consequência deve ser lida com atenção pelos partidos políticos e por todos os cidadãos que se preocupam com a causa pública. Principalmente em consequência da intransigente guerra política partidária depois do fim da primeira Grande Guerra  Portugal perdeu o regime democrático e passou por cerca de 50 anos de autoritarismo antidemocrático. Embora Portugal integre hoje a União Europeia, não sendo fácil as forças anti-democráticas assaltar o poder como fizeram em 1926, a perda de qualidade da luta política está a contribuir para Portugal estar a ser mal governado, que os partidos que adoptaram o neo-liberalismo (PS, PSD e CDS) pensam sobretudo em garantir a fidelidade da sua clientela distribuindo-lhe cargos e outros benefícios à custa do orçamento, e os outros, o PCP e o BE, posicionam-se mais como frente sindical do que como partidos procurando soluções globais mais justas e equitativas para a sociedade portuguesa sem deixar de procura fazer as reformas que levem à  eficiência e ao dinamismo da economia.

terça-feira, 5 de abril de 2011

As religiões surgiram pouco elaboradas

As religiões surgiram pouco elaboradas, tendo evoluído no caminho da racionalidade
António Bica

1.        A capacidade humana de raciocínio abstracto
A capacidade do homem de inter-relacionar factos presentes e factos passados com factos hipotisados e estes entre si, que é capacidade de raciocínio abstracto, permite-lhe debruçar-se sobre ele mesmo e o Universo. Essa capacidade leva o homem à necessidade de explicar o meio em que se integra e onde se desenvolvem as suas actividades: procura e produção de alimentos, de abrigo, de meios de defesa, de prazer. Interpreta assim o meio em que se insere e os fenómenos que nele ocorrem em função da necessidade de evitar o perigo que esses fenómenos possam ter para ele, como uma trovoada, uma cheia, uma seca, um tremor de terra, um vulcão, um vendaval, e de utilizar o que puderem ter de favorável.
Para a compreensão destes fenómenos o homem recorre à sua memória e à capacidade de hipotisar (supor) factos na base da sua experiência.
A complexa actividade que o homem sempre foi obrigado a desenvolver, procurando incessantemente alimentos, trabalhando para os obter, defendendo-se dos outros homens, dos animais e dos fenómenos naturais para ele perigosos, constitui o fundo da sua experiência, a sua memória individual e colectiva. O homem é sobretudo um laborador, actuador com o seu corpo, em especial as mãos, sobre o meio em que vive para o utilizar em seu proveito, ao serviço da sua vida, humanizando-o.
Porque os fenómenos que ocorrem no meio de que faz parte interferem necessariamente na sua vida, o homem procurou sempre agir em relação a eles para evitar que aconteçam, se desfavoráveis, ou para suscitar o seu acontecimento, se benéficos, afastar as suas consequências desfavoráveis e fazer surgir as favoráveis.

2.        O homem procura agir sobre a natureza por meios que ultrapassam as suas forças
Quando a acção sobre a natureza ultrapassa a capacidade do homem, procura consegui-lo por práticas rituais, o que corresponde a atitude mágica, que predominou nos colectivos humanos por muitos milénios e ainda frequentemente aflora. Tal como a percussão de duas pedras ou a fricção de dois paus faz surgir o fogo, admitia que outras acções pudessem fazer acontecer factos favoráveis ou desfavoráveis como provocar chuva ou afastar doença. Desse modo o homem visava tornar-se dominador do meio, procurando provocar ou evitar fenómenos naturais cuja ocorrência considerava para si benéficos ou nocivos. A convicção de que certos actos rituais seus levavam a que acontecessem determinados factos pretendidos reforçava-se com os ciclos dos fenómenos naturais: Se chamasse a chuva, ela surgiria decorrido tempo mais ou menos largo. Se procurasse afastar uma doença, ela acabaria por deixar o indivíduo ou o colectivo. Mesmo que o fenómeno desejado não ocorresse, ou não evitasse o acontecimento de fenómeno indesejado, era sempre possível atribuir isso à incorrecta prática do acto destinado a provocar ou a afastar o fenómeno, isto é a deficiente execução da prática mágica.
Nos povos agricultores continuou a prática da magia, porque se manteve a necessidade de chamar a chuva, expulsar a doença, quebrar o ânimo dos inimigos, dissipar as tempestades.
O conhecimento empírico dos fenómenos biológicos, astronómicos, climáticos e outros que condicionam a actividade dos colectivos humanos e a vida dos indivíduos levou progressivamente à personalização desses fenómenos. O sol, a chuva, a tempestade, a lua, os planetas, as constelações, os montes, os rios, as nascentes, as florestas, a noite, o céu, a terra, o fogo, os vulcões, o mar, os lagos, foram personalizados em espíritos ou em deuses. Cada uma dessas personalizações passou a ser destinatária de preces, sacrifícios, ofertas e outras práticas destinadas a torná-la benfazeja ou a aplacar a sua ira.
Foram criadas relações complexas entre estas personalizações e delas com os homens, que representavam, em regra, sob a forma de explicação do universo, os valores históricos do colectivo. É o que se designa por mitos, explicação de carácter emocional, isto é não racional.

3.       A pulsão humana de fuga à morte
A morte repugna naturalmente a cada indivíduo. A vida é organização com manutenção dessa organização, a morte a desagregação. A organização só pode manter-se opondo-se à desagregação. Por isso a morte (desagregação do indivíduo) repugna à vida. A oposição à morte por cada indivíduo levou ao aparecimento de explicação mítica da vida concebendo a morte como acidente, que, sendo embora de decisiva importância na vida do indivíduo, não o extingue.
Cada indivíduo é, por essa explicação, ou mito, desdobrado em duas realidades: uma visível e perecível e outra invisível e imperecível.
Na sequência dessa explicação surgiu a assimilação da vida do indivíduo aos ciclos resultantes dos movimentos de translação real ou aparente da lua, do sol, das estrelas e dos outros planetas. A verificação desses ciclos e da sucessão das estações do ano, da queda das folhas no outono, da floração na primavera, levou à formulação do mito do eterno retorno: a realidade imperecível de cada ser humano, ou mesmo, na concepção indú, de cada animal,  renascer, depois da morte da realidade visível e perecível, num novo corpo, à semelhança da permanente renovação da natureza.
Outra explicação concebia e concebe a morte do homem como definitiva para a realidade visível, sem renascimento ou reencarnação, mas com sobrevivência da realidade invisível.

4.        A estruturação das religiões
Assim se foram construindo explicações para o universo em que o homem (indivíduo e colectivo) vive e de que ele mesmo é componente fundamental. Essas explicações evoluíram com o crescimento dos colectivos humanos, o desenvolvimento das forças produtivas e a sequente reestruturação social, procurando dar coesão a cada colectivo e justificar, dentro dele, as relações económicas e os elos sociais entre os indivíduos e os grupos sociais.
A construção, ou mito, da dupla realidade humana como forma de responder à recusa individual da morte contribuiu para reforçar as sanções sociais contra os desrespeitadores das regras e fórmulas tendentes a garantir a conformação do indivíduo com as normas do colectivo. Aos respeitadores das leis, fórmulas e ritos foi e é prometida, ou a felicidade eterna, nos casos de não reincarnação, ou o progresso no caminho para a felicidade eterna ou ainda a libertação definitiva do sofrimento nos casos de renascimento.
Essas construções, com os seus espíritos, deuses, mitos, cosmogonias, aparelhos sacerdotais, templos e ritos, são as religiões.

5.        A organização tribal dos colectivos humanos
Os povos, ao fixarem-se na terra, tornando-se agricultores, mantiveram a estrutura tribal, cada tribo considerando os seus membros iguais entre si e os únicos com a dignidade de homens livres. Todos os outros indivíduos, não pertencentes à tribo, eram considerados gente exterior, sem integral dignidade humana (bárbaros para os gregos, filisteus e posteriormente gentios para os judeus), destinada a ser conquistada e escravizada. Os seus deuses eram, ou falsos deuses, ou deuses inimigos.
Assim cada tribo ou família de tribos (como as egípcias, as sumérias, as hebraicas, as gregas, as persas, as latinas) tinha a sua religião organizada na base dos valores tribais e consequentemente não apta a poder ser seguida ou adoptada por outras tribos.

6.        O comércio a distância levou à criação de estados
O desenvolvimento da produção criou condições para o alargamento do poder político da tribo ou do grupo de tribos para além do seu inicial espaço geográfico. Organizaram-se correntes comerciais regulares na base de transporte a dorso de animais, por rios e marítimo. Esse comércio possibilitou significativa acumulação de riqueza, porque, ligando grupos humanos com grande desigualdade de desenvolvimento quanto às técnicas de produção, tornava possível trocar produtos manufacturados, cuja produção no lugar de origem exigia certo tempo de trabalho, por outros cuja produção exigia muito mais tempo. Uma peça de tecido colorido, ou um recipiente de vidro ou barro, ou uma estatueta poderiam ser trocados por bom peso de ouro, de prata, ou de cobre, de trigo ou cevada, por bom número bois ou cavalos, ou por escravos. Pelo Mediterrâneo o comércio marítimo foi desenvolvido sobretudo pelos Fenícios e depois pelos Gregos. Portugal, no século 15,  ainda o praticou pelo oceano com povos de economia menos desenvolvida na África ao sul do Sahara.
A acumulação de riqueza que, sobretudo na antiguidade, o comércio internacional possibilitou interessou as unidades políticas mais ricas na defesa das rotas de comércio ou estimulou-as à guerra de rapina para se apropriarem da riqueza dos outros povos. Essa tendência para o alargamento da área de influência económica fez criar conflitos entre as múltiplas unidades políticas existentes e levou a que umas impusessem pela força o seu domínio a outras. Deste  modo se criaram unidades políticas alargadas, os estados, compostas por vários povos.

7.        A desadequação das religiões tribais aos estados
O progressivo alargamento destas unidades políticas cada vez mais vastas, que no Médio Oriente tiveram centro no Egipto, na Assíria, na Babilónia, na Pérsia, na Macedónia e noutros pontos, foi sendo feito sem que tivesse surgido sistema religioso suficientemente englobante para se tornar religião de unidade política composta de diversos povos. As religiões de raiz tribal resistiam e, porque cada uma delas era exclusivista tendendo a negar o mundo exterior à sua tribo de origem, nenhuma teve capacidade para se impor como religião dos povos englobados na mesma unidade política.

8.        Também ao império romano faltava unidade religiosa
À unificação política, económica, linguística e jurídica feita posteriormente pelo império romano também não correspondeu unificação religiosa. As religiões dos diversos povos que o constituíram eram de origem tribal e consequentemente qualquer delas incapaz de ser elevada a religião do império, porque cada uma tendia a negar aos povos diversos daquele que a criou o reconhecimento da igualdade. Há que creditar ao império romano  ter generalizado o uso do latim e do grego sem impor a eliminação das línguas dos diversos povos (que desapareceram muito tempo depois), mas tendo imposto, através do direito, comportamentos básicos de respeito pela vida humana e de cumprimento dos contratos, sem forçar o desaparecimento dos valores próprios de cada povo.
Embora o império romano não tenha conseguido criar sistema religioso capaz de unificar os povos que o integravam, fez débil tentativa com a deificação dos imperadores reinantes, que não teve força para se impor à convicção das populações, quer por a classe dominante ser suficientemente culta e racionalista para aceitar convictamente o culto do imperador, quer porque a divinização de homens vivos não era admitida pela generalidade das religiões seguidas pelos povos do império.
Na impossibilidade de o culto do imperador reinante unificar religiosamente o império, foi fomentada a interpenetração religiosa, favorecida pela deslocação dentro do império dos seguidores das diversas religiões: soldados, comerciantes e administradores. Em Roma foram admitidos os cultos dos diversos povos, o que foi institucionalizado e simbolizado no tempo do imperador Augusto com a construção em Roma do Panteon (templo de todos os deuses) reconstruído depois, sob a forma que hoje tem, pelo imperador Adriano. E por outro lado expandiram-se, ao lado dos cultos locais, o culto das divindades egípcias e outras do Médio Oriente.
As religiões mais evoluídas do Médio Oriente foram as que mostraram maior vigor e capacidade expansiva no império romano por serem mais universalizantes. O culto de Ísis era conhecido por toda a parte. O culto de Mitra parece ter tido expansão ainda maior.
Não era todavia possível a unificação religiosa sem religião suficientemente elaborada para poder ser aceite pelas classes dominantes  romanas de cuja preparação escolar fazia parte o estudo dos filósofos gregos e romanos. Essa religião teria que ter características que a compatibilizassem com o racionalismo da filosofia greco-romana.

9.        A adopção pelas tribos hebraicas de religião monoteísta
O povo hebraico de origem semita, mais tarde integrado no império romano, teve profundo contacto com o povo egípcio. Por razões complexas, em cuja base parece ter estado forte influência das religiões egípcias, nomeadamente o monoteísmo imposto pela reforma religiosa do faraó Aquenaton cerca do ano 1300 antes de Cristo na sequência do antigo culto do sol considerado pelos egípcios o grande deus, os hebreus criaram sistema religioso baseado no monoteísmo de Aquenaton a que adicionaram importantes elementos da cosmogonia semita mesopotâmica (por exemplo o dilúvio).
O povo hebraico, após a saída do Egipto pelo fim da centúria de 1300 antes de Cristo e a posterior fixação na Palestina, sofreu acidentes políticos diversos e as diferentes tribos foram perdendo consciência da sua individualidade. Só a tribo judaica sobreviveu aos impérios assírio e babilónio. Mais tarde, cerca do século 6 antes de Cristo, com o regresso das classes dominantes judaicas do exílio na Babilónia, se reorganizou politicamente em torno de Jerusalém, durante o império persa, e se manteve sob os impérios grego e romano até Tito e Adriano.
A religião hebraica, mantida desde então pela tribo de Judá, caracteriza-se, como todas as religiões de origem tribal, por ser válida só no interior da tribo, ou grupo de tribos com a mesma origem. O seu deus único é concebido como o dos judeus. Só pelos judeus é adorado e só a eles reconhece. É o seu protector e implacável vingador contra os outros povos. E promete, como deus tribal, conduzi-los à vitória sobre os outros e ao domínio sobre eles.
As religiões tribais eram em regra politeístas, isto é admitiam a existência de vários deuses. Embora os deuses da tribo só existissem dentro dela, não excluíam os das outras. Mas o sistema religioso hebraico assenta na concepção de um único deus, criador do mundo e dos homens. Todos os outros seus primitivos deuses foram degradados à categoria de anjos  (antigos deuses bons) e de diabos (antigos deuses maus). Não existe pois nenhum outro deus no Universo. Ele é o deus único, sendo-o apenas dos hebreus. Todos os outros povos estão, na concepção hebraica, privados de deus verdadeiro. E o deus único promete ao seu povo, os judeus, vir a dominar todos os outros. Esta é a contradição estrutural da religião judaica, que impede e sempre impediu o seu alargamento aos não judeus.

10.    A reforma cristã da religião judaica
A religião judaica estava então, durante o domínio político helenista e depois o romano, sujeita à inevitável fermentação por cruzamento de influências que deu origem ao aparecimento de correntes religiosas, de seitas, de comunidades, de profetas e reformadores. A integração de Judá no império grego e depois no romano impossibilitou à classe dominante judaica reprimir no seu território, a Palestina, as novas correntes religiosas por lhe faltar autonomia política.        
Assim em Judá, poucas centenas de anos antes de Cristo, nasceram diversas correntes religiosas à volta do velho núcleo monoteísta hebraico. Entre as múltiplas correntes (fariseus, saduceus, essénios, etc.) surgiram os cristãos organizados com base na reforma elaborada pelo profeta Jesus, que os seus seguidores identificaram com o Cristo, isto é com o grande rei que havia de conduzir os hebreus à vitória sobre os povos da terra, cumprindo assim as promessas do deus único hebraico.
A doutrina de Jesus assentava na existência de um deus único criador de todo o Universo tal como entendia a ortodoxia judaica. Mas introduziu-lhe valores novos que lhe fizeram perder o carácter tribal da religião judaica e deram potencialidade para se alargar a todos os povos. Esses valores novos foram: o reconhecimento de que todos os homens são iguais por todos serem filhos de deus único; o deus único ser deus de amor, compassivo e perdoador, isto é não vingativo e não ciumento como o Antigo Testamento figura deus.
Estes novos valores, introduzidos na velha religião hebraica tribal monoteísta, deram potencialidade ao cristianismo para se tornar religião universal e portanto religião do império romano, trazendo-lhe o cimento religioso que nenhum dos impérios anteriores conseguira.
Esta religião, que assentava na existência de um único deus de quem todos os homens são filhos e consequentemente iguais entre si, era suficientemente evoluída, racional e depurada para poder ser adoptada pelas classes dominantes do império romano. Para isso os dirigentes religiosos cristãos de cultura greco-romana tiveram o cuidado de vestir a nova religião judaica reformada com a roupagem da filosofia das correntes idealistas de raiz socrática, tarefa em que sobressaiu Paulo de Tarso da etnia judaica e cidadania romana.

11.    A adopção pelo império romano da religião cristã
A nova religião teve capacidade para se impor às classes trabalhadoras urbanas pelos valores de tolerância que adoptou das correntes filosóficas greco-romanas e do direito romano e por estas classes terem quebrado a sua ligação às estruturas económicas tribais. Os rurais do império romano, designados por pagãos por viverem nos “pagos” (aldeias), mantiveram por longo tempo, que as populações rurais são sempre as mais conservadoras, as velhas religiões só eliminadas por repressão, que se prolongou na Europa pela Idade Média e mesmo a Idade Moderna, contra a sobrevivência dos velhos cultos (práticas mágicas, fogueiras solsticiais, festas de Maio, refeições de culto aos mortos, orvalhadas do solstício de verão) por vezes disfarçados sob formas cristãs. Em Braga, no século 6, S. Martinho de Dume escreveu o livro “Sobre a correcção dos Rústicos” com o intuito de combater a sobrevivência das práticas pagãs.
O cristianismo submergiu a partir do século 4, com o reconhecimento pelo imperador Constantino, as restantes religiões do império romano e expandiu-se para além das fronteiras dele. Só foi arredado seiscentos anos mais tarde na parte sul e sudeste do império romano pelo Islão, que é religião monoteísta judaico-cristã depurada das complexidades teológicas do cristianismo.

12.    O monoteísmo  sob forma cristã e islâmica  expandiu-se no mundo
Com a expansão política e económica da Europa cristã, a partir do século 15, e do Norte de África e Médio Oriente islâmicos, desde o século 7, as religiões monoteístas, o cristianismo e o islamismo, alargaram-se à África, à Indonésia, ao centro  e ao norte da Ásia, às Américas e à Austrália.
Hoje o monoteísmo, sob forma cristã ou islâmica, tornou-se a concepção religiosa demograficamente dominante. Têm-lhe todavia oferecido forte resistência o induísmo (politeísta) dominante na Índia e o budismo partilhado pelo Sudoeste da Ásia, o Oriente Asiático e o norte da Índia, onde convive pacificamente com o remanescente de antigas religiões. O budismo, sendo mais filosofia do que religião, convive bem com outras filosofias (o confucionismo) e com antigas concepções religiosas nomeadamente na China e no Japão.

13.    O ressurgir na Europa do racionalismo da filosofia greco-romana
A racionalidade da filosofia greco-romana, que a teologia cristã adoptou para o cristianismo se ter podido expandir no império romano, reemergiu na Europa, por via do Renascimento, com o racionalismo nos séculos 17 e 18. Desse ressurgimento nasceram: a ciência, que é a observação cuidadosa dos fenómenos naturais, a sua repetição se possível (experimentação), e a procura de explicação racional deles; o sequente desenvolvimento tecnológico que deu origem à produção industrial de bens; e o progressivo alargamento a toda a população do conhecimento dos fenómenos naturais e das correspondentes tecnologias, por iniciativa do poder público, para a habilitar à produção industrial de bens.
O desenvolvimento da ciência e o sequente alargamento a toda a população do ensino levaram ao questionamento das religiões, desde o século 16, embora a interrogação sempre tenha estado presente na reflexão de alguns pensadores desde tempos anteriores.
O avanço no conhecimento da natureza levou a pôr em causa as religiões herdadas do passado. Uns, questionando-as, passaram a negar a concepção de deus único (sem aceitar a de múltiplos deuses). Outros a pô-la em causa, considerando não demonstrável a sua existência nem a inexistência.
Os que põem em causa a existência de deus, consideram que, observando o universo, se vêem corpos celestes girando entre si segundo leis constantes; que os compostos químicos cristalizam sempre sob certas formas; os elementos simples (hidrogénio, oxigénio, carbono e outros) se associam de modos sempre iguais se as condições forem as mesmas; os protões, os neutrões e os electrões sempre se organizam entre si segundo formas certas; os elementos mais simples, embora constituam realidades ainda mal compreendidas, parece obedecerem ao mesmo tipo de constâncias; e cada ser vivo sempre age para manter a sua existência e reproduzir a espécie. Assim é, consideram, porque de outro modo deixam de ser o que são.
O que os faz assim agir, procurando a melhor organização para eles, parece ser princípio inteligente universal comum a tudo o que existe.
Se assim for, a inteligência humana corresponderá ao constante avanço organizativo de tudo o que existe, complexificando o princípio inteligente universal. Tudo o que existe, ao tornar-se progressivamente cada vez mais complexo, potenciará esse princípio inteligente universal até capacitar, pela inteligência abstracta, os humanos a debruçar-se sobre si mesmos e sobre o universo de que fazem parte.

14.    A incapacidade humana para compreender completamente o universo
Outra questão é se os humanos alguma vez alcançarão o pleno conhecimento do universo, isto é de tudo o que existe. Não parece possível, que, sendo parte dele, isso estará fora do seu alcance. Compreender implica abarcar, o que os humanos parece nunca poderão conseguir com o infinito universo de que são ínfima parte. À parte parece estar vedado compreender, abarcar o todo.
Poder-se-á considerar, com Espinosa e outros pensadores, que este entendimento da inteligência corresponde à aceitação de deus imanente, isto é de deus inteligência do universo, pois, sendo o universo a suprema complexidade, englobando a complexidade de todos os seres, incluindo os humanos, corresponder-lhe-á necessariamente a suprema inteligência, que tudo compreende, geradora da máxima auto-consciência, concepção monista que se contrapõe à de deus transcendente, independentemente do universo, dele criador e nele presente, que é a das religiões monoteístas.
Mas a ideia de deus imanente não parece aceitável, que isso implicaria o universo ser dotado de inteligência distinta da de cada ser e haver nele, como nos seres vivos, mormente nos humanos, órgão específico produtor de inteligência consciente e também mecanismos capazes de fazer chegar os seus comandos a cada parte da sua infinitude, que, pelo que se pode inferir do que se observa, não existem.
A ideia de deus transcendente, isto é pré-existente ao universo, dele criador e distinto, responde à necessidade humana, que resulta da capacidade de raciocínio abstracto, de explicar o mundo exterior e consequentemente o universo. Porque os humanos, sendo ínfima parte dele, são incapazes de o compreender, embora o vão entendendo cada vez mais, em vez de modestamente aceitar essa realidade, têm tentado explicá-lo figurando a existência de deus como dele criador apesar de aceitarem a sua incapacidade de explicar deus.
Os defensores da ideia de deus (transcendente ou imanente) usam o argumento utilitarista, como se o universo existisse por causa dos humanos, da necessidade de haver regras de conduta a eles ditadas por deus, embora através de certos privilegiados, os profetas, para assegurar a harmonia entre os homens. Além de não ser racional a ideia de deus privilegiar alguns homens, com a sua comunicação, mesmo que indirecta (deus não comunica directamente com os homens), entendendo-se o universo criado por deus, é ele necessariamente regido pelas melhores leis, bastando por isso aos humanos, para assegurar a harmonia entre eles e com toda a natureza, procurar progredir no conhecimento das leis naturais. Por outro lado, tendo deus necessariamente criado o universo com as melhores leis, isso exclui a possibilidade de milagres, entendidos como excepção às leis naturais, por intervenção pontual de deus, pois, sendo elas de criação divina, não podem deixar de ser as melhores, portanto insusceptíveis de correcção.
A capacidade humana de raciocínio abstracto, procurando para tudo explicação, é que será geradora da ideia de deus imanente ou transcendente como explicação para o universo. Mas o avanço dos humanos no conhecimento do universo, embora modestíssimo como é e seguramente sempre será, está a levá-los a progressivamente aceitar a sua natural incapacidade para completamente o compreender sem deixar de sempre querer progredir no caminho do seu conhecimento.

15.    Não é lícito impor a alguém a adesão ou a não adesão a religião
A acção para converter outros à religião ou não religião (a que cada um de nós adere) para os convencer de que existe ou não existe deus ou de que a sua existência não é demonstrável  é legítima, porque cada um deve ser livre de procurar convencer outro do que tem para si como verdade. O que não é legítimo e o poder público nas sociedades organizados deve combater é o exercício fazê-lo pela força, isto é por coacção física, moral ou social.
A verdade é conclusão pessoal a que cada um chega raciocinando e sentindo-a como verdadeira, que não há padrão para a verdade, sendo antes meta para que, sem nunca definitivamente a alcançar, se avança individual e colectivamente pelo caminho de processo mental pessoal necessariamente livre.
Impor a alguém por coacção física, moral ou social que aparente considerar «verdade» aquilo de que pessoalmente não está convencido é tão ilícito, em rigor criminoso, como sujeitar outro a violência contínua.

A democratização chegou ao Egipto

Depois da Tunísia o caminho para a democratização chegou ao Egipto

António Bica

Com a fuga do presidente da Tunísia, Ben Ali, em 14 de Janeiro de 2011, e o início do processo de transição  para a democracia no país, o movimento revolucionário ganhou força no Egipto.  A manifestação popular permanente na grande Praça Taghrir (Libertação) iniciou-se em 25 de Janeiro de 2011.
Por todo o país as manifestações pela demissão do presidente Mubáraque, havia 32 anos no poder, e o fim da sua tentativa de passar o poder ao filho, sucederam-se.
O poder reagiu mandando a polícia reprimir. Muitos manifestantes morreram, talvez mais de trezentos, o que aumentou a oposição ao governo de Mubáraque. Ocorreu tentativa de pilhagem do Grande Museu do Cairo, onde se conservam os mais importantes vestígios arqueológicos da multimilenar civilização egípcia, que chegou a causar prejuízos; alguns assaltantes tentaram vandalizar a Biblioteca de Alexandria construída com patrocínio da Unesco; milhares de presos comuns fugiram das prisões.
Os manifestantes pela partida de Mubáraque e a democratização do país suspeitaram de manobra do regime para o governo lhes atribuir essas acções e justificar o endurecimento da repressão. Reagiram, defendendo o Museu do Cairo e a Biblioteca de Alexandria e denunciando a manobra. Com a incapacidade para reprimir o povo o regime apelou aos militares, mas o Exército saiu à rua sem reprimir a multidão que se manifestava. O regime, incapaz de reagir com dureza, nomeou um vice-presidente, Omar Suleiman, com o que deu sinal de que Mubáraque desistia de lhe fazer suceder o filho e admitia negociar.
Mas o povo não se deixou iludir. Continuou a manifestar-se. Na grande Praça Taghrir, no Cairo, manteve-se em manifestação permanente, sem o Exército, que controlava as ruas, intervir. O governo tentou nova manobra. Organizou contra-manifestação com gente pró-Mubáraque, que o povo considerou ser polícia disfarçada, para agredir os manifestantes. Apesar de causar muitos feridos, a manobra foi abortada pela oposição corajosa dos manifestantes.
O êxito da revolta popular da Tunísia contra a ditadura do presidente Ben Ali havia-se alargado assim  aos países árabes. No Egipto  tomou a dianteira. Não lhe faltou um mártir do regime como o que incendiara a Tunísia. Calede Said era um jovem de cerca de 20 anos que costumava usar a internete num ciber-café de Alexandria. No verão de 2010 a polícia entrou,  arrastou-o para a rua e espancou-o até o deixar morto. A notícia chegou pela internete aos milhões de jovens  e menos jovens que no Egipto comunicam pela internete.
Seguindo o exemplo dos tunisinos, os que usam a internete responsabilizaram pelo assassínio o presidente Egípcio e o seu regime de ditadura.
Apesar da repressão policial perseguir todos os opositores políticos e de tentar desmantelar as tentativas de organização política, a movimentação pela internete foi potenciada por algumas pequenas organizações clandestinas como o Movimento 6 de Abril criado na sequência da greve industrial de 2008 e o partido Gade (Amanhã).
Com a revolução na Tunísia começaram as manifestações populares que se alargaram ao Egipto em 25 de Janeiro de 2011 mobilizadas sobretudo pela internete. O governo reagiu bloqueando-a em 27 de Janeiro, o que descontentou todos os que a usam para fins não políticos e fez engrossar o movimento de oposição ao regime.
Os manifestantes ao aperceberem-se de que o regime procurava criar insegurança e caos para determinar o Exército a reprimi-los, colaboraram com os militares na defesa do Museu do Cairo, da Biblioteca de Alexandria e de outros locais públicos, como centros comerciais. E não se deixaram dividir entre eles, antes  procurando a unidade de todos os opositores à ditadura.
A economia no Egipto entrou em forte redução. Os turistas abandonaram o país e deixaram de entrar. As greves alastraram, incluindo nas empresas que servem o Canal de Suez. Em 8 de Fevereiro  de 2011, o regime, vendo que os manifestantes não abandonavam as ruas e a paralisação económica estava a causar graves prejuízos económicos, mandou o vice-presidente Suleiman à televisão declarar: «A crise tem que acabar.» Mas os protestos continuaram.
A 10 de Fevereiro foi anunciada comunicação de Mubáraque ao país. Todos esperavam que anunciasse a demissão. Como se não fosse responsável por nada disse: «Falo-vos como pai, para filhos. Tenho orgulho de vós. Quebram-me o coração os que morreram. Os responsáveis pelas mortes serão punidos. A crise está a causar enormes prejuízos.» Na sequência anunciou continuar no poder até às eleições presidenciais de Setembro. Falou em tom paternal, com aspecto, nos seus 86 anos, de, por operação plástica e pintura de cabelo,  ter 40.
A hipocrisia e o apego ao poder enfureceu o povo: «Vai-te, vai-te» foi gritado por todos. Ninguém saiu das ruas. No dia seguinte, 11 de Fevereiro, era sexta-feira, equivalente, nos países islâmicos ao domingo cristão. Mubáraque viu que a farsa não desmobilizara o povo. Mandou o vice-presidente Subeiman anunciar que se demitia e entregava o poder às Forças Armadas. Dezassete dias depois de 25 de Janeiro de 2011 a ditadura de 32 anos de Mubáraque caiu.
O comando militar egípcio anunciou, em, comunicado, que vai ter em conta as reivindicações populares sem querer substituir-se à legitimidade desejada pelo povo.
É declaração a ter em conta como provavelmente credível, que o principal líder militar egípcio,  marechal Hussein Tantawi, terá anteriormente comentado a atitude do exército tunisino de não reprimir o povo: «O exército defende a nação, não um regime».
 No Egipto, como na Tunísia, as camadas sociais médias com instrução, aspirando viver em democracia com desenvolvimento económico e em liberdade, derrubaram a ditadura.É de esperar que noutros países árabes seja seguido o exemplo da Tunísia e do Egipto.
O movimento revolucionário na Tunísia e no Egipto pela liberdade e a democracia, que parece continuar em fermentação nos países árabes, confirma que o evoluir histórico sempre é complexo e surpreendente, embora se verifique que a sua força impulsionadora tem a matriz comum de, quando largas camadas do povo se sentem oprimidas e impedidas de lutar pela justiça, mais cedo ou mais tarde, um acontecimento quase sempre imprevisível  galvaniza o povo para a luta a derrubar do poder quem o oprime.  

Líbia - As mudanças políticas nos países árabes estão a chegar à Líbia

As mudanças políticas nos países árabes estão a chegar à Líbia
António Bica

A Líbia é país do norte de África a marginar o Mediterrâneo com grande superfície (1.759.500 km2) e pequeno número de habitantes (6.500.000).
O país é na maior parte desértico, por chover nele muito pouco. O deserto do Sahara chega ao Mediterrâneo no Golfo de Sirte. Na zona costeira ocidental, onde se situa Trípoli e outras cidades, e na região marítima oriental, a Cirenaica, com a segunda maior cidade, Bengási, e outras, como Tobruque, onde ocorreram duros e decisivos combates na 2ª Grande Guerra entre alemães e ingleses, a pluviosidade é maior, possibilitando a actividade agrícola. Nesta região oriental o planalto de Barca é o mais fértil. No país só cerca de 10% da superfície é agricultável.
No deserto há escassos oásis onde é possível agricultura por aflorar neles água subterrânea resultante das raras chuvas no deserto que se infiltram (Fezan, Cufra e Audjila-Djarabube).
A região da Líbia integra a civilização mediterrânica desde a mais remota antiguidade com influências do Egipto, da Fenícia, da Grécia e depois de Roma. Com o império romano tornou-se cristã e, com a invasão árabe no século 7 da nossa era, passou ao islamismo, que mantém sob forma suni.
Passou então a integrar o califado e muito mais tarde o império turco de que fez parte até aos tempos modernos. Em 1912 a Itália ocupou o território que é hoje a Líbia, onde se manteve até ser expulsa durante a 2ª Grande Guerra. Em 1949 a ONU reconheceu o direito á independência do país, que passou depois a ser governado por monarquia, de que  passou a ser rei Muhámade Idris.
A monarquia foi pressionada a ceder bases militares aéreas aos americanos e aos ingleses perto da capital, Bengási, e marítimas em Tobruque, junto a fronteira oriental com o Egipto.
No início da década de 1960 foram encontradas no país significativas reservas de petróleo.
Pelo fim dessa década, em 1969, alguns militares, de que se destacou Muamar Kadáfi, seguindo o movimento político libertador nos países árabes iniciado com o fim da monarquia no Egipto em 1952, puseram fim ao regime monárquico. Aliou a sua tribo, a Kadafa, daí o seu nome Muamar Kadáfi (da tribo Kadafa) às outras duas maiores, a Magara e a Uarfala, que é a mais numerosa, com cerca de um milhão de pessoas
Kadáfi pôs termo às bases militares na Líbia, o que lhe valeu a hostilidade americana. A exploração de petróleo permitiu a autonomia económica do país até então dependente da agricultura nas escassas áreas cultiváveis e do aluguer das bases militares aos americanos e aos ingleses.
A maior parte da população líbia identifica-se pela tribo que considera integrar. Por ser região pouco povoada e de escasso interesse económico  a sua integração no império romano não esbateu a identidade tribal como aconteceu na generalidade do império.
 Com a conquista árabe no século 7 e o posterior domínio do califado continuou, pelas mesmas razões, a manter-se a identidade tribal, o que foi  bem tolerado por os árabes,  anteriormente à então recente conversão ao islão, se organizarem em tribos. O país tem diversas tribos que se repartem pelas três grandes regiões líbias: A Tripolitânia no noroeste, junto à Tunísia e ao mar, a Cirenaica, a nordeste, junto ao Egipto e também ao mar, e  Fezan, região desértica, onde se situa o oásis do mesmo nome, no sudoeste.
Tão forte é a identidade tribal que Kadáfi procurou respeitar  essas identidades, distribuindo entre as tribos parte significativa dos rendimentos do petróleo e os cargos políticos e militares de relevo, não assumindo título (Presidente ou outro) que pudesse ser entendido como sinal de supremacia da sua tribo sobre as outras, senão o de Guia.
O rendimento do petróleo e este equilíbrio de poder e interesses entre as tribos permitiram a Kadáfi ultrapassar a hostilidade americana, o bombardeamento americano de Tripoli pelos EUA na década de 1980 e a influência política e religiosa dos movimentos fundamentalistas islâmicos que os americanos fomentaram nos países árabes, desde o fim da década de 1950 ao início da década de 1990, para os opor aos regimes nascidos do renascimento político árabe do início da década de 1950 de que se destacou o de Nasser no Egipto.
Mas o mundo sempre está em mudança. Com a revolução na Tunísia e depois no Egipto no início de 2011, o poder de Kadáfi começou a ser contestado. Em 17 de Fevereiro de 2011, em Bengási, no oriente do país, onde domina a tribo Uarfala, houve manifestação política pacífica pelo fim do regime, na sequência da detenção em Bengási do advogado, Féti Tarbel, representante das cerca dos 1200 presos políticos executados na prisão de Abu Selim em 1996.
 A reacção foi dura, tendo morrido cerca de 600 manifestantes. Em consequência desta e das manifestações que se seguiram, houve significativas deserções militares, de ministros e de diplomatas, o que se deveu às suas origens tribais diferentes da de Kadáfi.
A perda do controle por Kadáfi de toda a região oriental, onde domina a tribo Uarfala que se separou de Kadáfi, e  boa parte de outras cidades deve-se a aí a tribo de Kadafa ter menor peso demográfico e poder. Na parte oriental do país o regime perdeu as cidades de Bengási (segunda maior cidade), Tobruque, Darna, Adjabia, Shahat e Al Baida. Na parte ocidental perdeu Zuara, Zaulia e Misurata.
Em 20 de Fevereiro, o filho de Kadáfi, Saif Al Islam, em declaração  de reacção segundo valores tribais, prometeu resposta com rios de sangue.
Instalou-se na Líbia guerra civil que parece ter carácter tribal, embora não pareça que a ONU, a Europa e os EUA tenham tomado disso suficiente consciência, o que pode levar a incorrecta análise das circunstâncias do conflito e a inadequada gestão dele. Kadáfi  está entrincheirado em Tripoli, a capital,   a desencadear ofensiva militar contra as cidades de que perdeu o  controle.
 Em consequência da luta numerosos imigrantes no país deixaram-no, a produção e a exportação de petróleo baixaram fortemente, o que levou o mercado, temeroso, a subir os preços.
O mundo reagiu preocupado. Ainda não saiu da crise e económica e financeira de 2008 e 2009. Esta subida de preços do petróleo pode debilitar a economia mundial. A ONU, pelo Conselho de Segurança, aprovou resolução contra o regime de Kadáfi, na esperança de o fazer cair brevemente. Os principais países da Europa e os  EUA imobilizaram os meios financeiros líbios nos seus países. Os navios de guerra americanos aproximaram-se da costa líbia. A Inglaterra propôs a imobilização da aviação líbia, o que tem que ser precedido de destruição prévia por bombardeamento dos meios anti-aéreos do país, podendo isso levar ao reagrupar das tribos líbias à volta de Kadáfi. O desembarque de tropas estrangeiras será solução pior.
Se os EUA ou a Europa quiserem influenciar a evolução política líbia, não poderão senão usar a pressão política e fornecer armamento às tribos que se opõem a Kadáfi, sem a certeza de, se vencerem, virem a democratizar o país.
A subsistência na Líbia da organização tribal está a levar a que o levantamento político contra o regime seja atravessado por clivagens dessas identidades, podendo impedir solução política do tipo da tunisina e da egípcia, embora o elevado nível de instrução das gerações mais novas na Líbia possa fazer esperar o esbatimento da cultura tribal e suficiente emancipação da influência religiosa fundamentalista.
A líbia tem reservas de petróleo  e de gás significativas. As percentagens dessas reservas   em relação às mundiais são de  3,3%  (petróleo) e de 0,4% (gás). Apesar de não muito grandes, a forte redução da exportação de petróleo e de gás líbios está a pôr nervoso o mercado de energia, em altura em que também o está o dos bens alimentares, e a ameaçar a economia mundial com nova crise energética como  a que resultou da guerra de 1973 entre o Egipto e Israel e, nos anos de 1980, da guerra entre o Iraque apoiado pelos EUA e o Irão.
A Europa e os EUA estão a começar de ficar temerosos de que esta onda política no mundo árabe se alargue à Arábia Saudita, que tem cerca de 20% das reservas mundiais de petróleo. Se nesse  país a contestação política interromper ou fizer reduzir significativamente a exportação de petróleo, o seu preço irá seguramente ultrapassar 200 dólares, talvez aproximar-se de trezentos.
 O mundo sempre muda e cada vez mais aceleradamente, o que parece resultar do desenvolvimento tecnológico, do consequente aumento da riqueza  e do incremento e massificação do ensino necessário à integração das populações nos inovadores processos produtivos industriais e de serviços.
É de saudar a renovação do mundo, que, com avanços e retrocessos, está a levar a humanidade a viver cada vez melhor.

O acelerado desenvolvimento da riqueza mundial

O acelerado desenvolvimento da riqueza mundial e a defesa da cidadania
António Bica

Com o inicio da revolução económica industrial, no século 18, deixou a humanidade de estar condenada à pobreza generalizada resultante do pouco significativo crescimento da economia agrícola e pecuária largamente dominante.
A partir de então, com a aceleração do conhecimento científico, o consequente desenvolvimento de novas tecnologias de produção de bens e serviços, o aumento e massificação da escolarização para habilitar as novas gerações a dominar as novas técnicas de produção, a riqueza foi crescendo aceleradamente, embora com altos e baixos de aceleração e de depressão.
Depois da 2ª Grande Guerra, nos últimos 60 anos, estima-se que a economia mundial passou de cerca de 10 milhões de milhões de euros para cerca de 70 milhões de milhões actuais. Embora então a população no mundo rondasse os 3 mil milhões de habitantes, hoje é de cerca de 7 mil milhões. Apesar deste forte crescimento da população mundial a riqueza média produzida no mundo por pessoa subiu de cerca de 3.333 euros por ano para cerca de 10.000 euros. E o crescimento da produção de bens no mundo continua a crescer a cerca de 4,5% ao ano.
Se se mantiver este ritmo, a produção mundial de bens chegará aos 140 milhões de euros em 2030 e a 280 milhões de milhões em 2050.
Este crescimento, se for acompanhado por aumento demográfico proporcional, a população mundial passará para 14 mil milhões em 2030 e 28 mil milhões em 2050.
Este projectado crescimento da população e da produção de bens suscita receio de a prazo não longo os recursos naturais da Terra em água, ar, solo agricultável, minérios, fontes energéticas se esgotem por via de poluição (água e o ar) e da sobre-exploração (solo, minérios, fontes energéticas).
Mas é de esperar que o crescimento da riqueza mundial leve, a prazo, à estabilização da população, como nas últimas cinco dezenas de anos se tem verificado nos países mais ricos, na Europa, no Japão, na Rússia, nos EUA, no Canadá e na Austrália. Nestes o crescimento demográfico, onde o há, deve-se à imigração. Sem imigração, apesar de forte diminuição da mortalidade infantil e da longevidade, a população nesses países declinaria.
A tendência para a diminuição da natalidade nas sociedades com boa produção de bens e serviços por pessoa deve-se ao desenvolvimento de técnicas fáceis e seguras de controle de natalidade, da instrução massificada das populações com maior racionalização dos comportamentos individuais, e da riqueza que leva a faixa etária em idade de reprodução a limitar o número de filhos para os poder educar nas condições que considera melhores.
Sendo embora de esperar que a população no mundo se estabilize pelos 14 mil milhões, esse número e o previsível aumento do consumo de cada um desses habitantes possibilitado pelo crescente aumento da riqueza mundial podem levar ao desequilíbrio dos recursos naturais indispensáveis à vida dos humanos e demais seres vivos.
Os neoliberais defendem que do livre desenvolvimento das forças económicas resulta o melhor para as sociedades de cada país e para o mundo. Mas não é a isso que temos assistido. Os mais ricos nos países mais desenvolvidos estão a influenciar os respectivos governos com o seu poder económico e a determinar a opinião dos cidadãos através dos grandes meios de comunicação social, que controlam, para lhes dar liberdade de destruição dos recursos naturais sempre que isso lhes convém para aumentar a sua riqueza.
Reclamam que se acabe com as regras tendentes a proteger os menos ricos e todos os que vivem do seu trabalho nos campos da economia, das finanças e da comunicação social; se deixe progressivamente de proteger os que vivem do seu trabalho e os mais desfavorecidos; se aliviem de impostos as maiores fortunas; o Estado esteja sobretudo ao serviço dos mais poderosos para os segurar quando entram em crise, como aconteceu em 2008 com a grande crise financeira, distribuindo com dureza por todos os que vivem do seu trabalho os encargos da crise.
O acelerado desenvolvimento da riqueza no mundo exige, pelo contrário, melhor Estado, que, controlado pela participação democrática dos cidadãos na sua organização e na eleição dos que exercem o poder público, os defenda da ganância dos ricos, do seu controle sobre o Estado e da sua asfixiante influência sobre os grandes meios de comunicação social.   

A crise do euro e a defesa da riqueza em capital financeiro

A crise do euro e a defesa da riqueza em capital financeiro

António Bica

Com o colapso, em fins da década de 1980 e início de 1990, da União Soviética e dos países cuja política era por ela influenciada, a Alemanha Federal, conhecida por Alemanha Ocidental, anexou a República Democrática Alemã (Alemanha Oriental).
Seguiram-se 10 anos difíceis para a Alemanha resultantes da anexação ter sido feita sem período de transição.
Nesse tempo, a Alemanha, acabados os regimes socialistas a leste, justificando com a necessidade de integração da Alemanha Oriental, levou os seus trabalhadores a aceitar não aumentar os salários e reduzir os apoios sociais.
No início da década de 2000 estavam ultrapassadas as dificuldades resultante da integração da Alemanha Oriental.
Então a Alemanha e grande número de países da União Europeia adoptaram moeda única, o euro.
A Alemanha continuou a política de estabilidade de salários e de apoios sociais. A reorganização económica dos países a leste da Alemanha, depois do colapso da União Soviética, estimulou as exportações alemãs.
Os países mais pobres da União Europeia (Grécia, Irlanda, Portugal e Espanha), com a entrada na zona euro, estimulados pelos juros bancários baixos possibilitados pela adesão ao euro, deixaram que o recurso ao crédito se expandisse fortemente ao consumo, à construção de casas, ao desenvolvimento da infra-estruturas públicas e ao financiamento dos défices públicos orçamentais, o que estimulou as exportações alemãs para esses países.
Assim, na Alemanha, em consequência dessa política de contenção salarial e de benefícios sociais, o aforro cresceu. Entre 2002 e 2009 foi o aforro de 1,6 milhões de milhões de euros. Desse enorme montante, 1 milhão de milhões foi pelos alemães (famílias, empresas e bancos) investido no estrangeiro em empresas, casas e compra de acções, obrigações e dívida pública.
Grande parte desses investimentos foi feita na Grécia, na Irlanda, na Espanha e em Portugal.
Isso, conjugado com a onda de neoliberalismo económico e financeiro dominante, levou esses países ao excessivo endividamento dos bancos e a forte crescimento da dívida pública.
Com a crise económica de 2009 que se seguiu à financeira de 2008 os créditos restringiram-se. Nesses países (Grécia, Irlanda, Espanha e Portugal) os bancos passaram a ter dificuldade em financiar-se junto de outros e os governos a ter que pagar juros cada vez mais altos para financiar os seus défices orçamentais.
Nos países (sobretudo a Espanha), onde havia grande construção de casas para férias destinadas a estrangeiros, a procura sofreu forte redução.
A solução clássica para este tipo de crise, que foi usada na resposta à Grande Depressão económica de 1929 e agora seguida principalmente pelos EUA e pelo Japão, foi a de emissão de moeda para estimular a procura de bens e os investimentos públicos.
Dessa medida resulta a elevação dos preços com desvalorização da moeda, que o aumento da quantidade de moeda sem ser acompanhado de proporcional crescimento da produção de bens gera inflação. A Alemanha, cuja economia não foi afectada pela crise de 2009, continuando a exportar bastante mais do que importa e sem dificuldade de crédito, e tendo as suas empresas e bancos e os seus cidadãos muita riqueza acumulada em capital financeiro, é prejudicada pela inflação na zona euro de que faz parte.
Sendo significativa parte da riqueza alemã capital financeiro representado por euros, não lhe convém que na zona monetária que integra haja inflação com desvalorização do euro. Isso levaria a que a riqueza financeira detida pelos alemães se desvalorizasse na proporção do aumento da moeda em circulação.
Por isso o governo alemão insiste em que o Banco Central Europeu não emita moeda para fazer sair da crise de financiamento os países endividados da zona euro, que estão a ser forçados a reduzir nominalmente o poder de compra dos seus cidadãos para superar a sua crise de financiamento.
Em Portugal não se havia tomado medidas de redução nominal dos salários desde os primeiros anos do governo de Salazar.
Parece ser, pela primeira vez na História, sobreposição dos interesses dos detentores da riqueza em moeda aos dos demais cidadãos do mesmo espaço monetário.
O peso económico e político da Alemanha está a impô-lo.        

a origem da geração à rasca

A origem da geração à rasca
António Bica

Com o ministro Veiga Simão o ensino pós-primário até ao superior abandonou o sector profissionalizante, tendo eliminado as escolas comerciais e industriais. Assim o ensino foi organizado de modo a encaminhar todos os alunos para o ensino superior.
A medida foi bem acolhida pelas camadas sociais de que saíam os alunos dessas escolas, que sempre foram vistas como destinadas aos filhos das famílias mais pobres.
Esta reforma Veiga Simão foi mantida pelos governos pós 25 de Abril, que nenhum partido quis, julga-se que bem, regressar à diferenciação anterior a Veiga Simão, nem teve a lucidez de prever que, não recebendo os alunos do pós-primário até ao superior preparação profissionalizante, haveria duas consequências prejudiciais:
A primeira para os alunos que abandonassem o ensino ou sem concluir o pós primário ou sem ingressar no superior.
A segunda para a economia, a que passou a faltar oferta de profissionais de formação não superior, tendo que admitir trabalhadores sem formação profissional, à espera que aprendessem trabalhando, com a consequente ineficiência.
O sistema de ensino depois de Veiga Simão, com o melhorar das condições de vida dos portugueses pós 25 de Abril, levou a forte procura do ensino superior. A resposta a isso pelo ministro socialista Cardia não foi a que deveria ter sido:
 Repensar o ensino pós-primário até à entrada no superior e, sem regressar ao sistema anterior a Veiga Simão, preparar os alunos para entrar no ensino superior e simultaneamente para exercer as múltiplas profissões indispensáveis à economia que não exigem preparação superior (electricistas, mecânicos, carpinteiros, contabilistas e tantas outras), se viessem a optar por não ingressar no ensino superior.
Em vez disso o ministro socialista Cardia afunilou a entrada no ensino superior, estabelecendo para cada curso limites quantitativos, sem se preocupar com a formação profissional dos que não entrariam no ensino superior e tinham necessidade de exercer uma profissão.
A este erro a merecer palmatória seguiu-se o do governo de Cavaco Silva, que, para responder à enorme procura do ensino superior pelos alunos que não entravam nas Universidades até então todas públicas, permitiu a livre criação de Universidades privadas sem suficientes fiscalização e controle de qualidade.
Isso, tendo feito baixar muito a qualidade da formação académica dos licenciados nas Universidades privadas, levou ao excesso de oferta de licenciados para a correspondente disponibilidade de empregos para esse nível de formação e à falte de profissionais habilitados com formação não superior.
Os empregos que não exigem formação superior, com a falta de oferta por nacionais mediante salários que os emigrantes aceitavam, passaram a ser ocupados por não nacionais (brasileiros, nacionais das ex-colónias, ucranianos e outros).
Entretanto, há cerca de duas décadas, começaram a ser criadas escolas de formação profissional destinadas aos alunos que abandonaram o ensino pós-primário. Foi solução insuficiente e inadequada por sofrer do estigma de diferenciação social que marcaram durante o salazarismo as escolas comerciais e industriais. Os alunos dessas escolas tendem a ser vistos como menos capazes por terem abandonado o ensino de preparação para entrada no superior.
Assim se foi caminhando de erro em erro no que respeita ao ensino em Portugal desde a reforma Veiga Simão. Em regra as adequadas reformas políticas só são feitas, ou por revolução (quando a casa vai abaixo) ou tarde e a más horas (quando uma trave está podre). É que, na política sempre acontece como, criança, ouvi dizer a uma sensata velhinha comentando o desconcertos da vida: «tudo vai como vai, nada vai como deve.»
Em 12 de Março a geração dos muitos novos licenciados sem emprego desceu à rua em Lisboa e em muitas outras cidades do país. Foram acompanhados por numerosos pais. Uns e outros estão frustrados. Os filhos porque não encontram trabalho, os pais porque esperavam para os filhos o bom e estável emprego que, quando eram jovens, uma licenciatura garantia.
A muitos jovens licenciados se ouviu na manifestação: «vou emigrar». Em Portugal, hoje, porque se não planeou adequadamente o sistema de ensino, desde o início da década de 1970, gastam-se milhões e milhões a formar licenciados que, não encontrando agora no país a saída profissional que querem, terão que emigrar. Assim está Portugal a preparar trabalhadores qualificados com formação superior para os deixar ir para os países mais ricos enquanto lhe falta trabalhadores com adequada formação não superior.
A falta de preparação profissional pelos jovens que abandonaram o ensino pós-primário levou à falta de trabalhadores portugueses para empregos que não exigem formação superior e à imigração para Portugal de trabalhadores de outros países, o que tem contribuído para manter baixos os salários nesses empregos.
Acresce a isto a crise das finanças públicas que a Alemanha nos está a impor (como a outros países da zona euro) para salvaguardar o valor do euro e com ele a imensa riqueza em moeda acumulada pelos bancos, as empresas e os particulares alemães.
É de todo o país este enrascanso e não só da geração à rasca que se manifestou em 12 de Março de 2011, convocada pelos modernos meios de comunicação social.
Está à rasca, mas é instruída e culta. Talvez por isso não tenha descambado em violência urbana.