segunda-feira, 6 de dezembro de 2010

A necessária reforma da Justiça

A NECESSÁRIA REFORMA DA JUSTIÇA

António Bica

I

A NATUREZA E A ORIGEM DO PODER DE JULGAR

            1. Numa sociedade humana organizada e autónoma a solução de conflitos internos entre indivíduos ou grupos não pode ser deixada à lei do mais forte sob pena de se pôr em causa a sua organização e, a prazo, a sua sobrevivência. Por isso em todas as sociedades organizadas e autónomas, que hoje se figuram como Estados, se tem chegado à definição de um poder judicial capaz de solucionar os seus conflitos internos, muitas vezes através de longa luta contra a justiça privada sob formas diversas – vingança, duelo e outras.

            2. Apesar do progresso na institucionalização do poder judicial ainda hoje os conflitos internos de natureza política são frequentemente solucionados pela força, incluindo a guerra civil, na falta ou deficiência de mecanismos de organização política capazes de assegurar a expressão por cada cidadão, de forma livre, periodicamente, e a diversos níveis de organização da sociedade, da vontade de cada um sobre os objectivos políticos a prosseguir e a eleição por período de tempo limitado daqueles que devem ser investidos no poder para prosseguir esses objectivos.
           
3. O poder de julgar é essencial numa sociedade organizada e autónoma e não pode ser deixado à iniciativa de cada cidadão ou de cada grupo. É poder eminentemente político por o seu exercício afectar a vida de toda a sociedade e ser essencial à sua manutenção e sobrevivência.

            4. Tal como as restantes funções essenciais à manutenção e sobrevivência das sociedades organizadas e autónomas, - a definição das normas a observar sob pena de coacção (poder legislativo) e o desenvolvimento das acções visando a prossecução dos objectivos políticos definidos pela sociedade (poder executivo), - o poder judicial corresponde ao exercício do poder soberano da sociedade em que está organizado para dirimir conflitos entre cidadãos e grupos, incluindo o próprio Estado, tendo por base o respeito pelas leis em vigor e em vista o melhor interesse colectivo.

            5. O poder judicial é pois um poder político. O julgamento não é um puro exercício de lógica em que a lei entre como primeira premissa, os factos como segunda e a decisão seja a conclusão. Não obstante as regras da vinculação do julgador à lei aplicável e de não poder abster-se de julgar, dispõe ele de larga margem de liberdade na interpretação e na aplicação da lei aos factos apurados. Esta margem de liberdade do julgador não pode ser arbitrária. Tem que se subordinar ao interesse colectivo tal como é entendido pelos cidadãos através da expressão periódica da sua vontade.
Dar ao julgador como referência para o uso da sua margem de liberdade no exercício do poder de que está investido a sua consciência é o mesmo que não lhe dar qualquer referência para o uso desse poder, dado que a consciência individual é um domínio inteiramente subjectivo.

            6. No caso de uma sociedade organizada e autónoma assente sobre o princípio da igualdade de todos os seus membros, os poderes de soberania definem-se de acordo com a vontade colectiva e os que exercem esses poderes são eleitos directa ou indirectamente pelos cidadãos para as respectivas funções por períodos de tempo limitado e nunca vitaliciamente, ou, em certos casos, por sorteio (que é a forma mais democrática de atribuir o poder numa sociedade composta por indivíduos iguais).

            7. No mundo de hoje está a tornar-se valor universal a organização dos Estados na base da igualdade de todos os seus membros. Nestas sociedades o poder de julgar não pode deixar de ser definido de acordo com as regras da democracia, o que implica que os juízes acedam à função de julgar por um período limitado de tempo e tendo por base a vontade popular, e os jurados, no caso do tribunal do júri, por sorteio como já é regra.


II

A ATRIBUIÇÃO DO PODER DE JULGAR

NAS SOCIEDADES DEMOCRÁTICAS MODERNAS


1. Nos estados democráticos modernos o poder de julgar é conferido em parte por eleição segundo sistemas eleitorais diversos (países de referência institucional anglo-saxónica, Suíça e outros) ou por nomeação vitalícia, sem prejuízo de mudança de tribunal (países de referência institucional francesa).

2. O exercício do poder de julgar não pode, nas complexas sociedades modernas, ser exercido por pessoas que não disponham de preparação técnica que lhes permita conhecer o ordenamento jurídico e fazer a sua melhor interpretação.

3. Esta exigência técnica começou na Europa a ser feita antes das revoluções democráticas dos séculos XVIII e XIX e foi utilizada pelas monarquias onde mais se afirmou o poder absoluto para eliminar o sistema de eleições dos juízes, que era de regra da Idade Média, e impôr o sistema de nomeação régia de juízes escolhidos entre letrados que cursaram leis.
A Revolução Francesa de 1789 não quis ou não foi capaz de, na França, onde o poder absoluto do rei mais se tinha afirmado, instituir a forma democrática de conferir o poder de julgar – a de eleição por tempo limitado.

4. Não serão alheias a isso as circunstâncias de os juízes nomeados pelo anterior poder real absoluto serem predominantemente burgueses letrados, na generalidade apoiantes da revolução, que não estavam interessados em pôr em causa o sistema de atribuição do poder de julgar, e de ao poder revolucionário ter convindo manter o sistema de nomeação para melhor garantir a sintonização deste poder com a nova organização do Estado.

5. Na tradição anglo-saxónica nunca se quebrou inteiramente a linha medieval de eleição dos juízes, porque na Inglaterra o poder real sofreu limitações impostas pela existência de instituição parlamentar desde a Idade Média.
Assim hoje os Estados democráticos ou seguem a tradição francesa de nomeação vitalícia dos juízes, ou o sistema, mais ou menos temperado, de eleição dos juízes.

6. A nomeação vitalícia dos juízes, mesmo que corrigida pela permanência limitada no tempo no mesmo tribunal, sofre do que é hoje corrente chamar-se défice democrático.
Cabendo aos juízes o exercício de um dos três aspectos ou vertentes do poder de soberania, é contrário aos princípios democráticos que o poder de julgar seja conferido a quem quer que seja por toda a vida útil para ser usado como se de profissão se tratasse.
Julgar é usar o poder derivado da soberania popular, que numa sociedade democrática tem que ser conferido tendo por base a vontade dos cidadãos e por um período de tempo limitado.

7. É evidente, para a consciência cívica de cada um de nós, que é absurdo que em democracia alguém tenha por profissão ser ministro vitalício, mesmo que vá rodando de ministério para ministério; que comece a carreira como secretário ou subsecretário de Estado e aspire a terminá-la, já avançado em anos, como primeiro ministro. E isto, mesmo que a respectiva nomeação tivesse por base habilitação com longos e exigentes cursos de administração pública. Do mesmo modo seria absurdo admitir-se a profissão de parlamentar, ou de presidente de Câmara Municipal.

8. Porque é que não nos repugna que em Portugal e em democracia o poder de julgar seja conferido vitaliciamente e como profissão a quem é aprovado num curso de Direito e no curso do Centro de Estudos Judiciários? Apenas por duas razões: Por um lado porque a Revolução Francesa manteve o sistema de nomeação dos juízes de entre letrados em leis como já sucedia no regime monárquico absolutista precedente; e por outro porque o poder de julgar está disseminado por muitas centenas de juízes e temperado com sistema de recursos de muitas das decisões judiciais, o que torna os seus eventuais erros ou desvios de poder mais diluídos e menos visíveis.

9. Mas nem por isso estas razões legitimam, à luz dos princípios da democracia, que o poder de julgar seja conferido vitaliciamente e apenas na base de uma habilitação técnica.
É inquestionável que o poder de julgar só poder ser conferido a quem esteja tecnicamente habilitado a conhecer o ordenamento jurídico e tenha capacidade de interpretação das normas jurídicas e de integração das suas lacunas. Mas isso não basta. É necessário que esse poder seja conferido pela vontade colectiva e seja limitado no tempo.


III
AS REGRAS CONSTITUCIONAIS PORTUGUESAS
PARA A ATRIBUIÇÃO DO PODER DE JULGAR
(REVISÃO DE 2004)

1. A Constituição define a República Portuguesa como Estado de Direito Democrático baseado na soberania popular (art. 2º) que reside no povo e é exercida segundo as formas constitucionalmente previstas (art. 3º) através do sufrágio universal periódico e demais formas previstas na Constituição (art. 10º).

2. Os tribunais são órgãos de soberania (art. 110º) que administram justiça em nome do povo e a que compete assegurar a defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos, reprimir a violação da legalidade democrática e dirimir os conflitos de interesses públicos e privados (art. 202º), sendo as suas decisões obrigatórias para todas as entidades públicas e privadas e prevalentes sobre as de quaisquer outras autoridades (artº 203º e 205º).

3. Para não alongar a exposição limitam-se as considerações ao âmbito dos Tribunais Judiciais, não considerando aqui os tribunais administrativos e fiscais e o tribunal de contas.
Os tribunais judiciais são constituídos por um magistrado judicial no caso dos tribunais singulares e por conjunto de magistrados judiciais no caso dos tribunais colectivos, podendo integrar o tribunal juízes sociais nos processos de arrendamento rural e em alguns relativos a menores e de trabalho, e jurados no caso do tribunal de júri.

4. Nos termos do respectivo estatuto os magistrados judiciais são nomeados vitaliciamente devendo ser cidadãos portugueses, estar no pleno gozo dos direitos políticos e civis, ser licenciados em direito, ter os cursos e estágios de formação, e preencher os demais requisitos para serem nomeados funcionários públicos.
Os magistrados judiciais, de agora em diante designados por juízes, são pois funcionários públicos que exercem vitaliciamente, durante a sua vida profissional útil, uma parcela do poder de soberania que é neles investida apenas porque a ela se candidataram, sendo licenciados em direito, tendo o curso do C.E.J. e preenchendo os comuns requisitos para serem nomeados funcionários públicos.

5. Sendo os tribunais órgãos de soberania, eles deveriam, de acordo com os princípios constitucionais, constituir-se a partir da vontade popular livremente expressa e por período limitado de tempo.
Todavia não é essa a solução para que aponta a Constituição nas normas referentes ao estatuto dos juízes (art. 215º e seguintes), embora também a não exclua quanto aos juízes de primeira instância.

6. No que respeita aos juízes dos tribunais judiciais de primeira instância atribui a Constituição ao legislador ordinário competência para definir os requisitos e as regras do seu recrutamento.
Quanto aos tribunais judiciais de segunda instância manda a Constituição que o recrutamento seja feito por concurso curricular entre os juízes da primeira instância.
Para o Supremo Tribunal de Justiça a norma constitucional manda recrutar os juízes por concurso curricular entre magistrados judiciais, magistrados do Ministério Público e outros juristas de mérito.

7. Embora a norma constitucional não afaste o princípio da eleição dos juízes para os tribunais judiciais de primeira instância, não é essa a regra observada em Portugal desde a revolução liberal do princípio do século XIX na linha da Revolução Francesa, nem foi acolhida (art. 217º) na Constituição ao atribuir-se ao Conselho Superior da Magistratura competência para a nomeação dos juízes dos tribunais judiciais.

8. A Constituição Portuguesa é contraditória no que respeita à atribuição do poder de julgar. Estabelece os grandes princípios democráticos – soberania popular, seu exercício através do sufrágio universal e periódico, qualificação dos tribunais como órgãos de soberania – e no que respeita à organização dos tribunais, admite que os titulares do poder de julgar possam nele ser investidos vitaliciamente, como profissionais, desde que tenham certas habilitações técnicas, e por nomeação.

9. É esta contradição que se pretende apontar e contribuir para que uma das componentes fundamentais do poder de soberania no Estado Português seja submetida ao princípio democrático básico de que todo o poder público originário é, em democracia, conferido directa ou indirectamente pelos cidadãos e por um período de tempo limitado.

IV
FORMA POSSÍVEL DE ELEIÇÃO DOS JUÍZES

1. Os juízes formam um corpo (art. 215 da Constituição). São um corpo especial na sociedade. Detêm uma importante parcela do poder de soberania que cada juiz exerce profissionalmente e por toda a vida útil. É de algum modo este corpo comparável ao dos militares profissionais, os quais, embora não tenham poderes de soberania, estão na posse das armas, que são o meio último de afirmar o poder.

2. Daí que, quer com os juízes, quer com os militares profissionais, as instituições de quem em primeira linha se espera o debate e a definição de políticas – os partidos – sejam cautelosos e pouco inovadores. Há como que respeito reverencial dos partidos perante a instituição judiciária tal como perante a militar. Também os advogados podem ser acusados de atitude reverencial em relação aos juízes.

3. Mas não é apenas por razões de princípio – embora o seja fundamentalmente – que se entende que os juízes devem ser eleitos. É também por razões práticas ou funcionais. Se os juízes forem eleitos por tempo limitado, os actuais desvios, que por vezes se verificam, de se julgar a matéria de facto sem respeitar com rigor o que se passou nas audiências, de se atrasar injustificadamente o curso de processos e de se tratar as partes, e quem as representa, como se estivessem elas ao serviço do tribunal e não o tribunal ao seu serviço, serão seguramente corrigidos em grande parte.

4. Se se movimentar a opinião pública, incluindo a nível político, no sentido de se institucionalizar a eleição dos juízes, estar-se-á a contribuir para democratizar a justiça no que ela tem de mais autêntico – fazer com que os tribunais se sintam ao serviço das partes, procurando fazer justiça o melhor possível, em tempo e com urbanidade.

5. Sabemos que muita gente, se arrepia com a ideia de eleição dos juízes, e esgrime com argumentos como – então e se for eleito um analfabeto?
Sem se querer citar em abono dos juízes analfabetos as exemplares decisões de Sancho Pança na ilha Baratária, considera-se que se deve exigir aos candidatos a juízes que, além de serem licenciados em direito, estejam habilitados com o Curso de Estudos Judiciários ou outro que garanta habilitação devida.
Um outro argumento contra a eleição dos juízes é o da eventual manifestação de tendência para as eleições serem afectadas por clivagens partidárias e de o universo eleitoral, mesmo a nível de comarca, poder não garantir um suficiente conhecimento por cada eleitor dos candidatos a juízes.

6. Julga-se, para responder a esta dificuldade, que se poderá figurar universo eleitoral a nível de comarca composto por cidadãos com profissões ligadas ao direito (advogados, solicitadores, funcionários judiciais, magistrados do Ministério Público, conservadores, notários) e cidadãos designados de entre os membros da assembleia ou assembleias municipais abrangidas pela correspondente comarca. Poderá também a lei prever que inclua representantes de associações e outras instituições cujos fins visem o prossecução de direitos humanos previstos na Declaração Universal de 1948. Uma composição deste tipo poderá assegurar que, a nível de cada comarca, os juízes respectivos sejam eleitos por um universo eleitoral qualificado, que deverá ser composto maioritariamente por membros das assembleias municipais correspondentes.

7. A lei poderá prever outro método de eleição desde que respeite o princípio democrático constitucional da soberania popular na designação de quem vai exercer poder de soberania (art. 2º da Constituição). A solução apontada para a eleição dos juízes de primeira instância, é exemplificativa, sendo uma das possíveis.

8. Se quisermos, sem alterar previamente a Constituição, que os juízes da primeira instância sejam legitimados por sufrágio popular, mesmo que indirecto, bastará que a lei imponha ao Conselho Superior da Magistratura que nomeie o candidato que receber maior número de votos.

9. Uma objecção dos juízes contra a sua eleição é a insegurança profissional criada aos juízes actuais. Mas sem razão.
O legislador não deve nem poderá pôr em causa os direitos adquiridos pelos actuais juízes. A reforma que vier a ser feita não poderá ser aplicada senão aos casos de novas vagas nos tribunais de modo a assegurar-se uma transição normal do regime actual para o electivo.

10. Há finalmente que referir que a eleição dos juízes, quando for institucionalizada, o deve ser gradualmente, começando pelos tribunais de comarca e alargando-se progressivamente aos restantes tribunais judiciais de primeira instância.
Quanto aos tribunais das instâncias superiores o sistema electivo, além de implicar revisão constitucional, não convirá que seja introduzido sem suficiente experiência de funcionamento dos tribunais da primeira instância com juízes eleitos que garanta a opção por um sistema de eleição democrático, mas determinado por critérios de competência técnica, de espírito de justiça e de independência.

11. A introdução do sistema de eleição dos juízes levará a que qualquer cidadão licenciado em direito e com curso do C.E.J. ou semelhante possa candidatar-se a juiz e ser eleito para exercer essas funções num tribunal determinado durante um período limitado de tempo. Findo esse período, ou é reeleito para o mesmo ou outro tribunal, ou regressa à sua actividade profissional normal, tal como um ex-ministro, um ex-deputado ou um ex-presidente da câmara.

12. A transitoriedade dos mandatos dos juízes e a obrigação de se submeterem a eleição para exercerem novo mandato, caso o desejem, determinará uma constante e saudável preocupação, por parte dos juízes eleitos, em exercerem o seu poder com independência, correcção técnica, espírito de justiça, normal celeridade e trato urbano com as partes e os seus representantes, não querendo deixar de se sublinhar que se entende que os advogados só têm direito a especial deferência enquanto representantes das partes e não por quaisquer razões de elitismo.

13. A eleição dos juízes de primeira instância, além de compatibilizar o poder que exercem com os princípios democráticos que enformam a Constituição Portuguesa, serão o principal remédio contra os vícios de funcionamento dos tribunais que são cada vez mais preocupantes.


V

A MOROSIDADE DA JUSTIÇA


1. A justiça não deve demorar a ser feita mais do que o tempo necessário para que:
a) cada parte envolvida possa trazer ao processo a sua versão dos factos e a sua posição quanto à aplicação da lei (princípio do contraditório);
b) se proceda à produção da prova sobre os factos alegados.
c) e se decida com estudo da lei e ponderação.

2. Para cada acto processual a praticar pela partes, pela secretaria, ou pelo juiz a lei fixa prazos cujo não cumprimento pelas partes é penalizado. Se o não cumprimento for do juiz, nada lhe acontece dado o seu estatuto de não responsabilidade. Mas se o juiz não pode ser responsabilizado, o Estado pode e deve sê-lo e, se entender, exercer o direito de regresso.

3. Se a demora for superior ao tempo necessário para as actividades processuais, o direito dos cidadãos a obter decisões judiciais justas e prontas é defraudado com prejuízo para os que sofrem essa demora.
Se o direito a uma decisão judicial pronta for prejudicada, o cidadão lesado deve ser indemnizado pelo prejuízo sofrido nos termos do art. 22 da Constituição que responsabiliza o Estado por acções ou omissões praticadas no exercício das suas funções e por causa desse exercício de que resulte violação dos direitos, liberdades e garantias em prejuízo de outrem.
A lei 67/2007 de 31/12 prevê o direito a indemnização, por danos decorrentes de administração da justiça.

4. Por sua vez a Convenção Europeia dos Direitos do Homem e suas alterações aprovadas pela lei 65/78 de 13/10 e pelas Resolução da Assembleia da República nº 30/86 de 10/12 e nº 16/94 de 2/4 dispõe no seu art. 6, nº 1 «Toda a pessoa tem direito a que a sua causa seja examinada, equitativa e publicamente, num prazo razoável por um tribunal independente e imparcial, estabelecido pela lei, o qual decidirá, quer sobre a determinação dos seus direitos e obrigações de carácter civil, quer sobre o fundamento de qualquer acusação em matéria penal dirigida contra ela».

5. O não cumprimento em devido tempo pelo Estado do seu poder – dever de julgar tem levado à sua condenação, quer no Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, quer nos tribunais portugueses.
Na verdade, se o juiz não praticar um acto processual no prazo fixado pela lei, tal facto não o pode impedir de o praticar depois, dado que não tem o direito de se abster de decidir. Mas nem por isso deixa de cometer uma omissão que ofende a lei processual que fixa o prazo para a prática do acto. Tal ilegalidade pode ter outras causas que não a negligência do juiz, por exemplo doença, ou, o que é cada vez mais comum, como acima se refere, acumulação de processos.

6. Mas, haja ou não negligência do juiz, não é isso relevante para afastar a responsabilidade do Estado para com o cidadão lesado no seu direito a uma decisão judicial proferida com respeito pelo cumprimento dos prazos processuais fixados na lei. Com efeito, o direito a indemnização não pode ser exercido contra o juiz, mas apenas contra o Estado, sendo irrelevante que haja ou não culpa do juiz.

7. Ao Estado compete organizar os tribunais e assegurar a sua administração de modo que os prazos fixados na lei processual para a prática dos actos processuais pelo juízes e pelas secretarias sejam cumpridos.
Se não o forem, não tem o cidadão de indagar, alegar e provar que houve culpa do juiz. Se o juiz não pode ser responsabilizado pelas suas decisões (art. 216 da Constituição) é irrelevante se o atraso que se verificar nas decisões judiciais seja devido ou não a culpa dele. Só o Estado responde pelo atraso processual perante o cidadão lesado, que prestará um bom serviço cívico se se não conformar com os atrasos processuais que forem lesivos dos seus interesses e exigir através dos tribunais a indemnização que for adequada.


VI

OUTRAS QUESTÕES PARA A REFORMA DA JUSTIÇA


1. Os Conselhos Superiores a que compete a nomeação, a colocação, a transferência, a promoção e a acção disciplinar em relação aos juízes (art. 217 da Constituição) deveriam, para se evitar desvios corporativistas e ausência de legitimação democrática, ser constituídos apenas por membros eleitos por período limitado de tempo pela Assembleia da República por maioria qualificada (talvez dois terços), com participação nele de número mínimo de juízes (talvez menos de metade), sendo desejável que a sua renovação periódica seja parcial (possivelmente um quarto), devendo os seus membros estar sujeitos às incompatibilidades dos juízes e as suas decisões só recorríveis para o plenário do Conselho.
Talvez, para evitar bloqueamento da decisão da Assembleia da República, como por vezes acontece, nomeadamente na substituição do Provedor de Justiça em 2009, se possa optar por, não havendo eleição por maioria qualificada, ser feita por maioria simples.

2. A qualidade das decisões judiciais pode ser melhorada se o juiz de primeira instância for assessorado por juiz social com conhecimentos específicos na área que é objecto da acção, como hoje se prevê para questões de família e menores, de trabalho e de arrendamento rural, por iniciativa do juiz ou das partes, a nomear por acordo das partes ou por sorteio de entre técnicos indicados como idóneos pelas respectivas associações profissionais.

3. Uma das razões apontadas como causadoras de disfunção na prestação da justiça é o sistema de inspecção dos magistrados (de que depende a sua progressão) que é muito marcado pela solução adoptada, depois do 25 de Abril de 1974, de auto-governo das magistraturas, o que continua.
A eleição dos juízes de primeira instância para exercer o poder de julgar por certo mandato levará à desnecessidade do actual sistema de inspecção na primeira instância para progressão dos juizes. O acesso às outras instâncias poderá ser feito por concurso público, cada candidato apresentando currículo acompanhado de trabalhos escritos que considerar relevantes.

4. Para além da questão central que é a legitimação democrática do exercício do poder de julgar, põe-se a da organização dos tribunais de modo que a justiça tenda a ser administrada em tempo tão curto quanto possível, sem prejuízo do contraditório, da produção de prova e do estudo e ponderação da decisão.  
Para que haja prontidão na justiça é necessário que se cumpram os prazos processuais. Não são as partes que os não cumprem, que são por isso prejudicadas. São os magistrados e os funcionários judiciais, que, não cumprindo os prazos legais, nem por isso deixam de poder e dever praticá-los, que, se o não fizerem, haverá denegação da justiça.

5. O mais fácil para quem tiver que criar normas para obstar a atrasos na prática dos actos processuais é prever punição. Não é esse o melhor caminho, que haverá sempre justificação para os atrasos, de que o mais corrente é o excessivo número de processos em movimento.
O remédio para que não haja atrasos no desenvolvimento de cada processo é a contingentação: cada magistrado e o grupo de funcionários judiciais que apoia o seu trabalho não movimentarem mais do que certo número de processos de dificuldade média a fixar por lei, talvez 500.
Havendo processos a aguardar distribuição por os juízos de uma comarca terem os contingentes preenchidos, deverá ser, em prazo a fixar por lei, instalado novo juízo, mesmo que por tempo limitado se o crescimento do número de processos se considerar conjuntural.
Se, havendo contingentação, não forem cumpridos os prazos processuais, será necessário que, quem for responsável pelo atraso, sofra sanção automática, sendo o mais eficiente a redução adequada na remuneração, ou, talvez melhor, nos prémios de eficiência que forem estabelecidos.
As partes lesadas devem, de modo automático, ter direito a indemnização, se houver atraso no andamento do processo, de acordo com regras simples a fixar pela lei, que poderá ser certa percentagem do valor da acção em função do tempo de atraso.

6. Para que a justiça seja feita em tempo não excessivo, é de ponderar a redução do direito de recurso a um grau para o julgado em matéria de facto e de direito.
O recurso para o Supremo Tribunal e o recurso para o Tribunal Constitucional, nomeadamente quando a parte interessada está tecnicamente bem representada, têm sido frequentemente usados para dilatar a decisão definitiva com uso de 3 graus de recurso pela parte a quem isso interessa.
O recurso para o Tribunal Supremo e para o Tribunal Constitucional pode ser, sem prejuízo da boa justiça, limitado aos casos em que sobre a questão concreta não houver jurisprudência do Tribunal Supremo e do Tribunal Constitucional, ou em que houver desconformidade com decisão anterior.
Esta solução, no que respeita aos Tribunais Supremos, poderá ter forte contestação do corpo dos juízes, porque não há juiz que não aspire a retirar-se da função de julgar no Tribunal Supremo. É claro que, reduzidos significativamente os recursos em 2º grau, os juízes a chegar ao Supremo não poderão ser numerosos.

7. É também desejável que não haja recursos intercalares no processo, que são frequentemente usados para o fazer atrasar pela parte a quem isso interessa. Esse recurso pode ser substituído por declaração fundamentada de não concordância sobre o decidido pela parte ou partes, com direito a contraditório e possibilidade de confirmação ou alteração da decisão pelo juiz. O decidido poderá ser objecto de apreciação no recurso que vier a ser interposto da decisão final desde que a parte o inclua no objecto do recurso.

8. Para que possa ser feita justiça em tempo curto sem prejuízo do contraditório, da produção de prova e do estudo e ponderação da decisão, é útil simplificar-se o formalismo processual, abrindo-se generalizadamente a possibilidade de o juiz, sem prejuízo do contraditório, por sua iniciativa, de uma parte, ou de ambas, determinar actos processuais específicos, visando a melhor solução do conflito.

9. Os adiamentos das audiências de julgamento nos Tribunais Colectivos devem-se frequentemente à dificuldade de reunir o colectivo de juízes.
Fazendo-se gravação audiovisual dos julgamentos com obrigação de o tribunal de recurso a visionar em audiência na presença das partes, com possibilidade de se repetir na audiência a prova que for considerada não esclarecedora se o objecto do recurso abranger o apuramento dos factos, pode, sem prejuízo da justiça, abolir-se o tribunal colectivo, passando os julgamentos a ser feitos por um juiz em tribunal singular.

10. Todos devem poder ir a tribunal para ver reconhecido o seu direito sem necessidade de passar previamente por meios extrajudiciais. Pode todavia a solução de muitos conflitos não chegar aos tribunais, procurando evitar-se a sua multiplicação, se se impuser às grandes empresas de seguros, bancárias, de fornecimento de água, da electricidade e gás, de telefones, às grandes transportadoras e a outras empresas com grande número de clientes, que financiem o funcionamento de tribunal arbitral com árbitro único a que cada cliente seu lesado possa recorrer sem prejuízo do direito a recurso para o tribunal judicial, em caso de conflito, sem custas, salvo de advogado que quiser constituir, sendo o árbitro nomeado pelo Conselho Superior da Magistratura de entre juízes ou de habilitados com o curso da CEJ e os funcionários nomeados pelo Ministério da Justiça, sendo a remuneração de todos paga pelo Estado sem prejuízo de reembolso pela empresa.

11. Mais de metade da máquina judiciária penal, prisional e boa parte da policial ocupa-se da repressão, da investigação, da instrução, do julgamento e do encarceramento por crimes relacionados directa e indirectamente com drogas ilegais.
A experiência norteamericana, nas décadas de 1920/1930, de criminalização das transacções de álcool deve ser ponderada e tirada dela a devida lição quanto a criminalização das transacções das drogas ilegais. Sempre que em algum país o poder legislativo tenta a despenalização, logo os EUA manifestam forte oposição, invocando tratados internacionais. Essa sistemática atitude leva à interrogação de uso nos romances policiais: quem ganha com o crime? Talvez do derradeiro destino dos fabulosos lucros anuais das transacções das drogas proibidas não andem arredias as grandes bolsas de títulos e as filiais em paraísos fiscais dos grandes bancos internacionais.
Apesar deste condicionalismo, que é a forte oposição dos EUA à legalização do comércio das drogas hoje proibidas, há que ser ousado e defender que acabe o proibicionismo que se diz destinar-se a preservar a sociedade do flagelo das drogas, quando não é capaz de evitar que as drogas entrem correntemente nas cadeias.
Se houver coragem para se legalizar o comércio das drogas cujo tráfico é hoje, sem eficácia, proibido, com reserva do monopólio do seu comércio para o Estado, os adictos ao uso de drogas poderão ser melhor ajudados e com menores custos, deixando de ser cometidos os muitos crimes que hoje se praticam directa e indirectamente relacionados com drogas ilegais, reduzir-se-á para cerca de metade a máquina judiciária penal, a prisional e boa parte da policial, libertando recursos orçamentais que podem ser destinados à prevenção do uso de drogas, à recuperação dos adictos e a melhorar a ressocialização dos presos condenados.

12. Para que os cidadãos tenham a melhor justiça quando a pedem em tribunal ou a ele são chamados, é necessário que o poder de julgar dos juízes seja delegado pelo povo em cada um deles, por escolha directa ou indirecta e por prazo limitado de tempo; que sejam cumpridos os prazos previstos nas leis processuais para a sua tramitação, criando-se, para obrigar a isso, mecanismos de correcção automática e que as decisões judiciais sejam proferidas com base em bom conhecimento do ordenamento jurídico e no estudo cuidadoso e ponderado do caso.
Mas, além disso, para que se chegue à melhor decisão judicial é necessário que as partes em conflito disponham de conhecimento do ordenamento jurídico do mesmo nível da que têm os juízes, o que, em regra, é assegurado constituindo como representante advogado.
Porque é assim, aos procuradores do Estado, que constituem o Ministério Público, designados Procuradores da República, é exigida e facultada preparação académica, após a licenciatura em direito, semelhante à dos juízes. Aos advogados não é exigida essa preparação, mas é necessário que seja. A escola que prepara, após os cursos nas faculdades de Direito, os candidatos a juízes e a procuradores da República deve preparar também os candidatos a advogado, com semelhante grau de exigência.

13. Há que referir o sistema prisional. É hoje ideia adquirida que as prisões não devem ser entendidas como lugar de expiação nem como depósito de delinquentes a aguardar o decurso do prazo da pena. Entende-se que os condenados devem ser objecto de acções que visem melhorar a sua formação profissional e adequar o seu quadro de valores nas relação com os outros aos socialmente dominantes.
Dado que é trabalho complexo, exige profissionais qualificados e numerosos em relação ao universo dos presos, sendo de custo elevado e elevadas as percentagens de ineficácia. Por isso terá que ser faseado o seu alargamento a todos os presos em função dos meios orçamentais disponíveis, tendo em conta as demais necessidades do país em ensino e saúde, começando-se pelos que forem julgados mais capazes de progredir nas acções de formação profissional e de adquirir os quadros de valores socialmente dominantes nas relações com os outros socialmente dominantes.

14. Os atrasos na tramitação dos processos levam frequentemente à extinção da responsabilidade criminal por decurso do tempo, como prevê o Código Penal, mesmo que esteja a decorrer procedimento criminal contra quem é suspeito ou acusado de ter praticado crime.
Como a lei processual justamente estabelece garantias para os arguidos, se eles tiverem meios económicos para se fazerem representar por advogados experientes e empenhados capazes de usar os meios processuais garantísticos, o decurso do processo pode ser arrastado por tanto tempo que a responsabilidade criminal do arguido se extingue por decurso do prazo, se não for normalmente célere o procedimento processual.
Não é aceitável que os arguidos com meios económicos suficientes possam assim eximir-se à aplicação da lei penal. Os mecanismos propostos para que a tramitação não sofra atrasos evitará que os que têm melhor condição económica se consigam desse modo eximir a condenação pelos crimes que houverem cometido.

15. Há que não esquecer o apoio judiciário que deverá ser prestado com nível técnico normal e com independência, convindo que o magistrado do Ministério Público competente acompanha a prestação do apoio judiciário e, findo o processo, ouvido o beneficiário do apoio, preste informação nele sobre a qualidade do apoio prestado, com direito do advogado a reclamação para o juiz do processo.
O advogado que prestar apoio judiciário deve ser justa e atempadamente remunerado de acordo com tabela oficial, podendo o juiz reduzir, segundo critérios que a lei deve determinar, o montante da remuneração, se a qualidade do apoio for julgada deficiente e melhorá-la se for considerada boa.

16. Há finalmente que referir que não é desejável que os tribunais comuns julguem os juízes. Demasiadas vezes são julgados com não aceitável indulgência pelos seus pares. A solução adequada será serem julgados por tribunal colectivo constituído por membros do correspondente Conselho Superior designados por sorteio de modo que haja maioria de não juízes, com recurso para tribunal com composição semelhante com o dobro mais um de membros, sem prejuízo do recurso para o Supremo Tribunal e para o Tribunal Constitucional de acordo com as regras comuns. 
     

VII
As soluções apontadas

1. O ajustamento da estrutura judiciária às necessidades da sociedade é tarefa nunca concluída porque a sociedade é dinâmica. A não existência de ajustamentos leva a que as disfunções se acumulem.
A solução deverá passar pela introdução de automatismos  que levem a correcções graduais das disfunções que o tempo faz surgir de modo a evitar-se que situações de crise rebentem.
A opinião hoje dominante na sociedade portuguesa é a de que há grande desadequação entre o funcionamento da justiça e o que os cidadãos dela esperam em celeridade, respeito pelas partes e as testemunhas, sensatez das decisões.

2. Se se optar pelo tipo de solução apontado, ou semelhante, todos beneficiaremos com o cumprimento pelos juízes e pelas secretarias judiciais dos prazos processuais, tendendo a justiça a ser feita atempadamente sem risco de perda de qualidade e sem tendência para a postergação do princípio do contraditório e para a administrativação da justiça.

3. As ideias apontadas poderão contribuir para melhorar a qualidade da justiça, se forem institucionalizadas. Sejam estas ou outras as soluções que venham a ser adoptadas, a verdade é que não podemos continuar sem adoptar medidas eficazes que garantam que os processos sejam julgados em tempo razoável, sem se cair no facilitismo do enfraquecimento do princípio do contraditório e da administrativação da justiça, como já começou a ser feito e parece ser tendência.


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