sexta-feira, 24 de dezembro de 2010

A PAC para depois de 2013

Que política agrícola comum (PAC) teremos em 2013?

A Comissão Europeia e o Parlamento Europeu vão avançando na discussão da nova PAC,  que   entrará  em vigor em 2013.
Por notícias publicadas e por opinião de alguns técnicos e políticos  será propósito da Comissão Europeia que a próxima PAC se baseie  nos habituais 2 pilares.
  O primeiro assentará em subsídio anual e  directo a pagar aos agricultores activos dissociado da produção, com tem vindo a ser feito, procurando-se  melhorar a competitividade, incluindo remuneração pelos serviços  que os agricultores prestam  aos colectivos nacional e europeu,  o que se poderá designar por produção de bens públicos ambientais. Deverá esse subsídio ser adequado e mais  equitativo,  contribuindo para  o equilíbrio ecológico, prevendo-se também, no primeiro pilar, intervenções no mercado, se  necessário. O subsídio será  rendimento  dos agricultores dissociado da produção, constituindo direito transferível, embora dependente da detenção de superfícies elegíveis, admitindo-se limite máximo de pagamento para as grandes explorações agrícolas com variação em função da intensidade  do trabalho assalariado.
   No segundo pilar prevêem-se medidas plurianuais de apoio ao investimento em meios rurais para diversificar as  actividades e incrementar os empregos locais, com respeito pelo ambiente, visando o  desenvolvimento territorial equilibrado,  melhorar a competitividade e a capacidade de inovação, combater as alterações climáticas, assegurar o equilíbrio ambiental, incluindo a qualidade da água e do ar e a preservação dos solos, o que apontará crescentemente para agricultura  ecológica.
Pretende-se com a PAC  garantir a segurança alimentar na União Europeia, o que a Comissão Europeia considera essencial,  e contribuir com exportações para responder ao  aumento da procura de alimentos no mundo, que a FAO prevê ser de 70% até 2050 em consequência do aumento esperado da população mundial,  e à previsível crescente volatilidade dos preços dos bens alimentares no mercado mundial como recentemente se tem verificado.
Por outro lado quere-se melhorar a qualidade e a diversidade dos alimentos a produzir na União Europeia, com respeito pela saúde pública, o ambiente, a qualidade da água, a saúde dos animais e o seu bem estar, a fitossanidade, a  defesa e a melhoria da paisagem rural e  a preservação da biodiversidade, procurando-se também contribuir para prevenir as alterações climáticas.
E pretende-se  garantir a viabilidade das comunidades rurais, contrariando a tendência para o despovoamento dos campos, por se considerar que a  manutenção dessas comunidades contribui para  gerar benefícios económicos, sociais, ambientais e territoriais e para preservar o equilíbrio territorial.
A Comissão Europeia entende que a próxima reforma da PAC deverá assegurar que  não haja redução da produção agrícola, que, pelo contrário, deverá aumentar, quer para  assegurar o abastecimento agroalimentar europeu, quer para garantir o abastecimento em matéria primas agrícolas das  indústrias não alimentares.
Com a nova PAC a entrar em vigor em 3013 procurará a União Europeia que os agricultores tenham melhor capacidade de concorrência nos mercados mundiais e que, no mercado interno, dos preços finais  pagos pelos consumidores nas grandes superfícies retalhistas, a parte que cabe aos agricultores deixe de ser cada vez mais reduzida como está a acontecer, admitindo-se que uma das medidas a tomar para isso seja a agilização das vendas directas pelos produtores aos consumidores e a promoção de mercados de proximidade e a venda directa aos consumidores (canais de distribuição alternativos).
A PAC a entrar em vigor em 2013 deverá ter em conta que  em 2015 deixará de haver quotas de produção de leite e que, por então, acabará o actual regime de produção de açúcar, o que, quanto ao açúcar, é em Portugal pouco significativo.
Admite-se que a partir de 2013 se reforcem os meios de prevenção de riscos climáticos e também de variação dos  rendimentos, tendo em conta a instabilidade de preços dos bens agrícolas que se tem verificado.

Pelo exposto aceita a União Europeia que se tenha em conta as condicionantes de relevo, de solo e  de clima de regiões específicas, atribuindo-se aos agricultores delas rendimento adicional sob forma de pagamento complementar por superfície a considerar no segundo pilar; aceitando-se também que aí se continue a atribuir subsídios  em função da produção, isto é subsídios não dissociados da produção.
A Comissão Europeia admite, todavia, que a PAC a entrar em vigor em 2013 possa prever apenas ajustamentos e melhorias à actual PAC; ou, em vez disso, avançar  significativamente para medidas com objectivos ambientais e de combate às alterações climáticas  no quadro de política de desenvolvimento rural, demarcando-se da atribuição de subsídios e de grande parte das medidas de intervenção no mercado.
O reforço da componente ambiental da PAC, se se vier a optar por isso a partir de 2013,  permitirá pôr fim ao sistema de atribuição de subsídios aos agricultores, que é justamente criticado pelos países menos desenvolvidos e os de economia emergente  com base nas regras da Organização Mundial de Comércio, questão que continua há muitos anos em  aberto na chamada Ronda de Doha, e também criticado pelo Tribunal de Contas Europeu que considera que o sistema de  subsídios desligados da produção tem estado a levar à atribuição de rendimentos a quem não produz, isto é a assegurar rendas de avultado valor aos grandes proprietários de terras enquanto os pequenos agricultores quase nada recebem e muitas vezes nada.
É reconhecido que todos os agricultores, e mais os pequenos, que são os que se mantêm a  viver nas zonas rurais, desempenham função social imprescindível e de grande relevo.  São  eles que mais contribuem para manter as zonas rurais habitadas e o correspondente espaço humanizado.
 A crescente emigração das populações  para os centros  urbanos está a desertificar progressivamente de gente as zonas rurais, que, se deixarem de ser habitadas,  tenderão a transformar-se em selva  desordenada sujeita a catastróficos incêndios,  com o correspondente prejuízo ecológico,  a  produção de madeira a  tornar-se cada vez mais aleatória, e as terras agricultáveis a deixar progressivamente de o ser, tornando-se necessário  significativos e demorados investimentos para voltarem a ser agricultáveis.
Devem  os agricultores ser  pagos para prestarem esses serviços imprescindíveis e de grande interesse social e não subsidiados. Com a sua actividade, se  correcta e adequadamente desenvolvida, podem os agricultores:  combater as alterações climáticas,  assegurar a  gestão da água,  a preservação da biodiversidade,  manter em uso as terras capazes de produção agrícola ou em condições de entrar em produção logo que necessário,  limpar de matos potenciadores de incêndios florestais incontroláveis os espaços a floresta,  florestar os  terrenos improdutivos florestáveis,  gerir adequadamente as paisagens e os espaços rurais,  preservar e melhorar as técnicas de produção agrícola,  pecuária e florestal,  manter adequada maquinaria agrícola a produzir ou com capacidade de entrar em produção logo que necessário.
Isso é serviço de relevante interesse público prestado aos colectivos nacional e europeu que deve ser pago no quadro do primeiro pilar da PAC.  Porque indispensável, deve ser remunerado adequadamente em função do trabalho correspondente do  agricultor e de assalariados que para isso tiver que empregar, com pagamento feito sem burocracias inultrapassáveis pelos pequenos agricultores, mas com verificação adequada e em tempo do cumprimento  da efectiva prestação dos serviços correspondentes.
Assegurados pelos agricultores esses serviços através da adequada remuneração a ser-lhes paga, no âmbito do segundo pilar, pelo colectivo nacional e europeu, não parece que se deva atribuir-lhes quaisquer subsídios para produzirem.  Essa prática respeitará as normas decorrentes da Organização de Comércio Internacional  quanto a comércio internacional e permitirá  concluir a contento das partes as há muito abertas negociações de Doha.  Por outro lado  reconhecerá aos agricultores a dignidade de viverem do seu trabalho efectivo e não de subsídios que justamente são entendidos como esmolas por serem dissociados da produção.  Cada agricultor, por si ou associado com outros, assegurada a produção dos necessários serviços de preservação e gestão do ambiente rural por que há de receber adequado pagamento,  poderá  produzir o que considerar que melhor remunerará o seu esforço, competindo no mercado local, regional, nacional, europeu e internacional.
Tendo em conta que o desenvolvimento económico continua em aceleração e que consequentemente número crescente de pessoas  tem meios para optar por alimentos produzidos  segundo métodos ecológicos, que esse modo de produção agrícola e pecuário é, por um lado, mais respeitador dos equilíbrios ambientais  e, por outro,  mais exigente em trabalho, o que tudo contribuirá para desacelerar o despovoamento das zonas rurais,  possibilitando manter em uso agrícola e pecuário as áreas que a agricultura feita segundo métodos industriais intensivos tende a marginalizar,  é desejável que a futura PAC apoie, no âmbito do segundo pilar, os investimentos necessários (directos e indirectos) ao desenvolvimento  desse modo de produção, sem todavia o impor.
É essa PAC que melhor servirá os interesses dos agricultores europeus a partir de 2013. Veremos se haverá coragem política para contrariar com ela os interesses económicos das grandes empresas produtoras de agroquímicos, sementes híbridas, plantas transgénicas, adubos e outros meios técnicos que lhes dão milhões, mas são destrutivos do equilíbrio ambiental e, a praso, da saúde das populações.

segunda-feira, 6 de dezembro de 2010

Como nasceram e evoluíram os movimentos religiosos fundamentalistas

COMO NASCERAM E EVOLUÍRAM OS MOVIMENTOS RELIGIOSOS FUNDAMENTALISTAS ISLÂMICOS E OS EUA SE ENREDARAM NELES

António Bica



1. O ATAQUE ÀS TORRES GÉMEAS E AO PENTÁGONO
Em 11/9/2001 dois aviões comerciais saídos de Boston destruíram os dois maiores edifícios de Nova Iorque, onde funcionava o controle da finança mundial. Outro avião destruiu parcialmente o edifício do Ministério da Guerra (conhecido por Pentágono) na cidade que é capital dos Estados Unidos da América do Norte.
Os aviões que atingiram o Pentágono e os edifícios de Nova Iorque foram conduzidos para os alvos por alguns passageiros com capacidade para pilotar aviões que forçaram os pilotos a deixar os comandos e conduziram-nos de forma a embater nos edifícios.
Foram terríveis acções. Morreram milhares de pessoas. O presidente dos Estados Unidos da América do Norte considerou-as, não como actos criminosos que foram, mas como actos de guerra, que são acções de hostilidade militar entre estados, ou de hostilidade militar entre organizações políticas do mesmo estado que disputam o poder político. Em ambos os casos há adversários definidos e conhecidos. O que aconteceu em 11/9/2001 nos Estados Unidos da América do Norte não foi isso. Foram actos de guerra, como declarou o presidente norte americano, ou actos criminosos?


2. CRIMES OU ACTOS DE GUERRA

Não é indiferente a qualificação. Se foram actos de guerra, à luz da prática militar do século 20, a morte de civis foi consequência admitida pelos Estados Unidos da América do Norte, como o fizeram na Segunda Grande Guerra ao bombardear sistematicamente, causando centenas de milhares de mortos, as casas de habitação dos civis das cidades alemãs, como Dresden, ou de cidades ocupadas militarmente pelos alemães, e as cidades japonesas de Tóquio, Hiroshima e Nagasaqui, estas duas últimas com bombas atómicas. Depois essa prática continuou no Vietname nas décadas de 60 e 70, e, recentemente, na Jugoslávia, onde os norte americanos justificaram as numerosas mortes de civis e os ataques a edifícios não militares, incluindo aos serviços de televisão jugoslavos e à embaixada da China, como admissíveis “ efeitos colaterais”.


3. QUEM É O AUTOR DOS ACTOS

 Ao qualificar os actos de destruição e morte de 11/9/2001 como actos de guerra o governo dos Estados Unidos da América do Norte declarou guerra a quem os desencadeou. Como nenhum governo reivindicou as destruições de edifícios e as mortes em 11/9/2001, considerou-se no direito de fazer a guerra ao Afeganistão onde declarou situar-se a chefia da organização Alcaida a que atribuiu os actos.
O que foi então dito nos Estados Unidos da América do Norte e repetido pelo governo da Inglaterra levou a acções militares com grande destruição de vidas de civis, de casas e de estruturas económicas no Afeganistão, com o fundamento de aí viver Bin Laden  considerado chefe da Alcaida e de este ter, segundo o declarado pelo governo dos americanos do norte, organizado e ordenado a destruição dos 3 edifícios em 11/9/2001.
Mesmo sendo verdade o que o governo norte americano disse sobre Bin Laden, o que aconteceu em Nova Iorque e Washinton não terá sido acção de guerra, mas acto criminoso. O governo americano tinha o direito e o dever de procurar que os responsáveis pelo crime fossem julgados, mas não o de desencadear acções militares contra o Afeganistão ou qualquer outro país.


4. A OPOSIÇÃO DOS EUA AOS NASCENTES REGIMES PROGRESSISTAS NO MÉDIO ORIENTE

Para melhor se entender os factos e as suas intrincadas motivações deve relembrar-se que Bin Laden fez estudos superiores na Inglaterra e foi financiado pelo governo americano, na década de 80, para recrutar, doutrinar, treinar e armar jovens nos países islâmicos para serem usados então no Afeganistão contra as tropas soviéticas. Com isso fez fortuna. Depois da saída dos soviéticos do Afeganistão, passou a organizar jovens fundamentalistas islâmicos que aí lutaram, nos países donde eram originários, após a eles regressarem, como na Argélia, no Sudão, no Egipto e outros países, para neles se oporem aos regimes considerados laicos.
A facção Taliban, que detinha em 2001 o poder na maior parte do território afegão, havia-o conquistado com o apoio do governo norte americano através do governo paquistanês que controlava e controla. O apoio aos Talibans, que são islâmicos sunitas wahabitas radicais, foi dado para impedir a partilha do poder no Afeganistão com os afegãos islâmicos xiitas pró-iranianos, dado que o governo norte americano continua a considerar o governo iraniano, que sucedeu ao seu protegido rei deposto (o xá da Pérsia) no fim da década de 70, como inimigo.
O governo dos Estados Unidos da América do Norte substituiu no Médio Oriente, depois do fim da Segunda Grande Guerra, o domínio imperial da Inglaterra. Interessava-lhe dominar os governos da região para controlar o petróleo e proteger os judeus instalados na Palestina ao abrigo da Declaração Balfour. Apoiou para isso os regimes conservadores autocráticos do Egipto, da Líbia, do Iraque, da Jordânia, da Arábia, dos Emiratos.
No Irão de monarquia constitucional, em 1953, depois de o progressista e laico Mossadegue ter ganho as eleições legislativas, os norte americanos, com colaboração inglesa, conspiraram e agiram para derrubar o governo então eleito e entregar o poder político ao rei que passou, sob controle norte americano, a governar despoticamente o país.
No Egipto o movimento de jovens militares laicos e progressistas derrubou, no início da década de 1950, a monarquia e fez, com Nasser, a reforma agrária, nacionalizou o Canal do Suez, defendeu o nacionalismo árabe e propôs-se apoiar o povo da Palestina expulso das suas terras pelos judeus e o Estado de Israel.
No Iraque o partido Baas seguiu o exemplo dos jovens militares egípcios, derrubando a monarquia instalada pelos ingleses depois da derrota dos turcos na Primeira Grande Guerra.
Na Líbia também um movimento de jovens militares, seguindo o exemplo egípcio, derrubou a monarquia.
Os governos norte americanos ficaram preocupados com o reforçar da frente árabe contra o estado de Israel, que entretanto, em 1948, se havia constituído, e as reivindicações dos novos governos progressistas e laicos que defendiam que os recursos nacionais, incluindo o Canal de Suez e o petróleo, fossem usados para desenvolver a riqueza nacional, a educação e a promoção da igualdade, incluindo das mulheres.
O governo norte americano sentiu-se ameaçado pelos regimes políticos progressistas árabes no que qualificava como seus interesses no Médio Oriente. E o regime monárquico autocrático e medieval da Arábia temeu ser derrubado. Ambos os governos se coligaram para combater os regimes que o nacionalismo progressista e laico árabe fez nascer no Médio Oriente a partir do inicio da década de 1950.


5. OS EUA ORGANIZARAM MOVIMENTOS RELIGIOSOS FUNDAMENTALISTAS PARA SE OPOREM AOS REGIMES PROGRESSISTAS NO MÉDIO ORIENTE
O combate foi organizado com base ideológica na corrente religiosa fundamentalista wahabita, que é a seguida no reino da Arábia, com direcção estratégica dos Estados Unidos da América do Norte e apoio financeiro do reino da Arábia. Milhares de milhões de dólares foram mandados, sob orientação dos Estados Unidos da América do Norte, pelo reino da Arábia, acompanhados de pregadores wahabitas do reino da Arábia, para os países árabes com regimes laicos progressistas.
Esses pregadores usaram o dinheiro para organizar, sob capa religiosa, as camadas sociais mais pobres e fanatizá-las contra o laicismo dos regimes dos seus países. Assim nasceram e se desenvolveram, desde o início da década de 1950, os movimentos político-religiosos fundamentalistas no Egipto (Irmãos Muçulmanos), no Iraque, na Síria, na Líbia e na Argélia, inspirados na corrente religiosa wahabita. Na Palestina, com propósito idêntico, Israel fomentou o nascimento e a implantação do Amas.
Quando, na monarquia constitucional do Afeganistão, na década de 1970, os partidos progressistas, entre eles o Partido Comunista, ganharam as eleições, os Estados Unidos da América do Norte e o reino da Arábia enviaram dinheiro e pregadores wahabitas para combater o novo governo. À instabilidade política que assim foi criada respondeu o governo afegão, em que o Partido Comunista tinha peso, com pedido de apoio militar à União Soviética, que não teve o senso político de o não prestar senão com armamento.
A entrada militar soviética no Afeganistão levou os Estados Unidos da América do Norte e o reino da Arábia a recrutar jovens fundamentalistas religiosos nos países árabes e muçulmanos, onde haviam criado organizações político-religiosas de oposição aos regimes progressistas, e a treiná-los, armá-los e enviá-los para o Afeganistão.
Para a União Soviética foi o reverso do que fora o Vietnam para os Estados Unidos da América do Norte.
O originário do reino da Arábia, Bin Laden, religioso fundamentalista wahabita, foi um dos enviados para recrutar, doutrinar e treinar jovens combatentes islâmicos fundamentalistas.
Acabada a guerra no Afeganistão contra o regime progressista e os soviéticos, no fim da década de 1980, o Iraque, no início da década de 1990, ocupou militarmente o Queite, emirato árabe grande produtor de petróleo. O vizinho reino da Arábia sentiu-se ameaçado. Os Estados Unidos da América do Norte consideraram que o controle político pelo Iraque de tão grandes reservas de petróleo, como são as do Iraque somadas às do Queite, poderia ser perigoso para os seus interesses, não obstante o regime iraquiano de Sadam, embora de origem progressista e laica, se ter posto, no início da década de 1980, ao serviço dos norte americanos para combater o regime clerical xiita do Irão.
Era necessário, para combater o governo do Iraque, instalar bases militares americanas no reino da Arábia. O rei da Arábia aceitou e os fundamentalistas religiosos wahabitas não se opuseram, porque a acção militar era contra o regime iraquiano de matriz progressista e laica.
Os iraquianos foram expulsos do Queite, mas os soldados norte americanos não abandonaram o reino da Arábia. A corrente mais rigorosa do fundamentalismo árabe wahabita, a que pertence Bin Laden, passou a opor-se a que as tropas americanas continuassem a ocupar o reino da Arábia após a guerra de 1991 contra o Iraque por não serem de religião islâmica.
Assim começou a criar força e organização e a voltar-se contra os Estados Unidos da América do Norte a corrente político-religiosa wahabita mais fundamentalista chefiada por Bin Laden, que anteriormente havia estado ao serviço da política norte americana no Médio Oriente.        
Até então, início da década de 1990, os movimentos fundamentalistas religiosos, organizados e financiados pelos EUA para se oporem aos movimentos políticos progressistas do Médio Oriente, não haviam arvorado a bandeira política da luta contra a ocupação da Palestina por Israel. Quando os EUA se recusaram, no início da década de 1990, a retirar as suas bases militares da Arábia Saudita, que os movimentos religiosos fundamentalistas consideram terra sagrada do Islão, passaram a considerar os governos estadunidenses como o inimigo. Para se legitimarem junto dos povos árabes e islâmicos, passaram a adoptar como sua a causa palestiniana contra Israel, luta que então sempre havia sido liderada apenas por movimentos progressistas e laicos do Médio Oriente.


6. O CONFLITO NA PALESTINA

A partir de então as organizações islâmicas radicais, entre elas a de Bin Laden, têm defendido e praticado acções contra os norte americanos também com fundamento em o governo norte americano dar apoio militar, económico e diplomático ao seu incondicional aliado, o estado de Israel, que mantém, há quase 60 anos, a ocupação militar do país dos palestinianos, a usurpação das suas terras para instalação de colonatos de judeus, a destruição sistemática de casas, o assassínio de dirigentes palestinianos, e a expulsão, desde 1948, por Israel, de centenas de milhares de palestinianos das suas casas e terras. Tudo isto apesar de resoluções do Conselho de Segurança das Nações Unidas reconhecerem o direito de regresso às suas casas e terras em Israel dos palestinianos expulsos pelo estado israelita, e ordenarem a retirada militar dos territórios da Palestina e o desmantelamento dos colonatos judeus. Esta situação de injustiça mantém-se porque os Estados Unidos da América do Norte têm servido de escudo protector ao estado de Israel.


7. O FACTOR RELIGIOSO

Neste conflito entre palestinianos e o estado de Israel cada parte segue a sua religião: os palestinianos o islamismo e o estado de Israel o judaísmo. Assim, neste conflito de há 60 anos, uma religião é factor de unidade entre os judeus de todo o mundo, que não são muitos, mas são poderosos, porque controlam a grande finança mundial e os grandes meios de comunicação social americanos e europeus, e a outra entre os seguidores do Islão, que são na sua maioria pobres, mas numerosos, cerca de mil milhões de milhões.
Quando as religiões são usadas na política, rapidamente ela abandona os discursos racionais e as atitudes pragmáticas para se entrincheirar em posições inflexíveis. Foi assim nos séculos 12 e 13 com as Cruzadas na terra da Palestina, nos séculos 16 e 17 com as guerras religiosas entre protestantes e católicos na Europa, recentemente, na década de 1990, na guerra entre católicos croatas, ortodoxos sérvios e muçulmanos bosníacos na Jugoslávia, e na Irlanda do Norte entre católicos e protestantes.
A situação de conflito actual mais injusta, em que as fronteiras da guerra são também de religiões, é na Palestina, e não se vê saída para o contínuo martírio dos palestinianos, só porque o governo americano tem apoiado o estado de Israel mesmo nas acções de flagrante injustiça.
Não é por isso de admirar que este arrastado conflito palestiniano seja sentido, entre as centenas de milhões de seguidores da religião islâmica como causa sua.


8. A GUERRA NO AFEGANISTÃO

Parece confirmar-se que o ataque aos edifícios nova-iorquinos e ao ministério da guerra americano em 11/9/2001 foi obra do grupo islâmico fundamentalista Alcaida, de que Bin Laden é dirigente, reagindo com justificação religiosa contra o governo norte americano, por este, ao apoiar o estado de Israel, mesmo nas acções injustas, estar a perpetuar o sofrimento dos palestinianos, e por se recusar a retirar as bases militares norte americanas que instalou no reino da Arábia. E, se assim foi, o governo norte americano, além de dever procurar levar a julgamento os responsáveis pelos crimes cometidos em 11/9/2001, terá que alterar a política internacional que tem seguido na Palestina e em todo o mundo e de deixar de seguir a política arrogante e injusta que tem seguido em nome dos interesses americanos, como se tudo no mundo se devesse sacrificar a eles.
Mas não é isso que tem feito até agora. No fim de 2001, com o apoio do Conselho de Segurança das Nações Unidas, os Estados Unidos da América do Norte fizeram a guerra ao Afeganistão sob o pretexto de aí viver Bin Laden e de combate ao terrorismo. Foi fácil ao exército norte americano vencer no Afeganistão dada a impopularidade do regime religioso fundamentalista dos Talibans.
Todavia o governo norte americano não respeitou, no Afeganistão, ao fazer a guerra, a legalidade internacional com os prisioneiros de guerra. Negou-lhes esse estatuto, fê-los transportar para fora do Afeganistão e prendeu-os em bases militares longínquas, como Guantânamo, em Cuba, onde tem mantido indefinidamente presos sem lhes reconhecer direitos de defesa.


9. A GUERRA NO IRAQUE

Quando, no Afeganistão, a guerra deixou de mobilizar grande número de soldados, o governo norte americano voltou-se para o Iraque, país com as maiores reservas de petróleo a seguir ao reino da Arábia, sob o pretexto de ter armas de destruição em massa e de combate ao terrorismo alegadamente apoiado pelo Iraque. O argumento não convenceu a opinião pública internacional e os governos de alguns países com assento permanente no Conselho de Segurança das Nações Unidas. Apesar da forte pressão norte americana a favor da guerra ao Iraque, o Conselho de Segurança não considerou haver razões para a guerra.
O governo dos Estados Unidos da América do Norte, apesar disso, declarou e fez ilegalmente a guerra ao Iraque apoiado em países anglossaxónicos, de que se destacou a Inglaterra e em alguns outros, não obstante a guerra contra um país soberano só poder ter lugar no caso de legítima defesa (art. 51º da Carta da ONU). Fora do quadro da legítima defesa, só o Conselho de Segurança das Nações Unidas pode autorizar a guerra e apenas quando verificar a existência de ameaça contra a paz, ruptura da paz, ou acto de agressão (arts. 39º e 42º da Carta).
A campanha militar afigurou-se fácil para o governo norte americano. Por isso fez então   declarações que prenunciavam futuras declarações de guerra contra a Síria (por pressão de Israel), o Irão (para dominar as suas reservas de petróleo) e a Coreia do Norte (para dar sinal de poder sobre um país às portas da China).
A campanha militar no Iraque mostrou que, para se conquistar um país, não basta superioridade militar. É preciso que a população aceite a ocupação. Isso não aconteceu no Iraque e continua a não acontecer. A ocupação militar norte americana do Iraque é precária e tem obrigado à presença de cerca de 150.000 militares e a enormes despesas.
Por isso o governo norte americano não passou a acções de guerra contra o Irão e a Síria. A manutenção de 150.000 militares no Iraque não lhe permite alargar a guerra a outros países sem risco de oposição da opinião pública norte americana e de agravamento do enorme défice das contas públicas.
No que respeita à defesa dos direitos humanos o governo norte americano deixou e recomendou que os prisioneiros iraquianos fossem objecto de tortura e tratamento degradante, como na prisão de Abu Graib, Guantânamo e outras.


10. NÃO SE PODE SER ARROGANTE
Os Estados Unidos da América do Norte são país poderoso, mas nem por isso podem deixar de respeitar o direito internacional, pensando poder infringi-lo sem sofrer por isso consequências. Os milhares de milhões de pobres do mundo e, mesmo nos países tidos como ricos, as pessoas com espírito crítico que lêem as notícias dos jornais, vêem as das televisões e ouvem as das rádios, procurando perceber o que dizem, o que calam e o que distorcem e as razões por que o fazem, não aceitam a política internacional conduzida ao sabor dos interesses norte americanos, sem respeito pelo direito internacional e a Organização das Nações Unidas e sem ter em conta os valores éticos, o direito internacional e os direitos humanos. A revolta e o desespero dos muitos milhões que no mundo sofrem e sentem a injustiça da política internacional norte americana podem não os deixar calar. Mesmo um conhecido judeu ( Noam Chomsky) reconheceu: « A história dos Estados Unidos da América do Norte não é bonita. Limparam a população nativa da América (os índios). Entraram brutalmente no México e cometeram atrocidades horríveis na América Central e nas Caraíbas. Foram às Filipinas matar meio milhão de pessoas.»


11. O PRETEXTO DO COMBATE AO TERRORISMO
O governo dos Estados Unidos da América do Norte tem vindo a justificar as suas acções de força com fundamentos de ocasião para impor os seus interesses. O pretexto para a agressão ao Iraque foi a alegada  necessidade de eliminar o armamento de destruição em massa. Como essas armas não existiam, passou a justificar a agressão com a presumida possibilidade de as vir a ter, e de alegadamente o regime iraquiano dar apoio ao terrorismo, tendo o cuidado de não definir o conceito de terrorismo.
Na verdade, o que é terrorismo?
Tem sido rótulo, com intenção de infamar, que os mais poderosos põem aos mais fracos que se lhes opõem. Os levantamentos dos povos africanos contra o domínio colonial era terrorismo para os colonizadores. A resistência dos palestinianos ao ocupante israelita é terrorismo para o estado de Israel. Os ataques a instalações militares norte americanas em outros países pelos que se opõem à sua presença aí é terrorismo para o governo dos Estados Unidos da América do Norte.
As Nações Unidas têm-se empenhado em definir “terrorismo” para que, nos conflitos, não haja agressões contra civis inocentes. Mas não se tem chegado à definição internacionalmente aceite de “terrorismo” porque os governos dos Estados Unidos da América do Norte e de Israel querem que a definição seja à medida dos seus interesses.
Não é aceitável que o governo norte americano invoque a necessidade de combater o terrorismo para justificar agressões contra outros países enquanto se não se definir o conceito de terrorismo no âmbito do direito internacional.


12. HÁ QUE TIRAR LIÇÕES PARA O FUTURO

O governo dos Estados Unidos da América do Norte, com o pretexto de responder aos terríveis acontecimentos de 11/9/2001 e de combater o terrorismo, organizou uma rede militar permanente de policiamento à margem da Organização das Nações Unidas, arrogando-se o direito a fazer a guerra aos países que acusa de contrariar os interesses americanos, como no Iraque, onde desde a primavera de 2003 fazem guerra ao povo iraquiano, com a destruição da sua economia e a morte de milhares de pessoas.
A globalização financeira, económica e de informação está a ser servida pelo braço policial militar global americano à margem do direito internacional. É altura de o governo americano reflectir como parece poder fazer com o actual presidente Barak Obama. Tem vencido o desejo irracional de vingança e o espírito de cruzada e de domínio mundial, acrescentando mais mortes às mortes, mais crimes aos crimes e maior desespero aos injustiçados do mundo.
No plano dos direitos humanos, o governo dos Estados Unidos da América do Norte reintroduziu o que se julgava definitivamente afastado: a prisão sem culpa formada por tempo indefinido e sem direito de defesa, a prática da humilhação e da tortura de prisioneiros, a criação de “ilhas” de “não direito” onde mantém detidos os que se lhe opõem, negando-lhes o estatuto de prisioneiros de guerra e o direito de defesa.
O que declarou o presidente norte americano Bush, referindo-se a Bin Laden, « como no velho oeste (dos cowboys) procura-se morto ou vivo» é mau prenúncio. Não no achando, ou não no querendo achar, nem morto nem vivo, apesar do colossal poder militar, económico e tecnológico, continuou o governo dos Estados Unidos da América do Norte a arrogar-se o direito de intervir pela força onde decidir invocando os seus interesses e a luta contra o terrorismo que cada vez mais fomenta com a sua arrogância e acções unilaterais.
O mais retrógrado fundamentalismo islâmico nascido no reino da Arábia na segunda metade do século 20 soprado e organizado pelos sucessivos governos norte americanos no âmbito da chamada Guerra Fria é bem o contraponto da política do governo norte americano seguida pelo presidente Bush. Como Diabo e Grande Satã, na dança infernal de que estão a ser vítimas os povos do mundo.


13. A ELEIÇÃO DE BARAK OBAMA PARECE ESTAR A FAZER MUDAR DE RUMO A POLÍTICA INTERNACIONAL DOS EUA
A eleição de Barak Obama em Novembro de 2008 e a sua entrada em funções em Janeiro de 2008 pode levar a significativa alteração da política internacional dos EUA. Foi anunciado o fim, a prazo médio, das prisões ilegais de Guantânamo e outros locais. Declarou-se o fim da tortura como método (ilegal e desumano) de obter confissões. Foi mostrada disposição de negociações com o Irão. Foi declarado que em cerca de ano e meio as tropas estadunidenses deixarão o Iraque. Foi nomeado mediador para o conflito entre a Palestina e Israel que se mostrou capaz de, na Irlanda do Norte, concertar a paz entre o IRA e os protestantes realistas.
Mas não parece que o actual presidente dos EUA, Barak Obama, tenha tomado consciência de que, para ser retirado o forte apoio que os movimentos religiosos fundamentalistas islâmicos têm entre as centenas de milhões de milhões de árabes e muçulmanos, é indispensável acabar com o conflito entre a Palestina e Israel numa base de justiça e retirar as tropas dos EUA das bases militares dos EUA na Arábia Saudita.
Se isso for feito, o actual vivo apoio do mundo muçulmano aos movimentos fundamentalistas religiosos islâmicos continuará a reforçar-se.
É necessário que o actual governo dos EUA presidido por Barak Obama tome consciência de que a defesa dos interesses estadunidenses não se faz com arrogância, com espírito de vingança e de retaliação, com manifestações de força sem alargados apoios internacionais e decisão da ONU, sem procurar ouvir as razões dos outros por menos razoáveis que pareçam as suas posições, sem análise objectiva da base dos conflitos. Barak Obama tem mostrado ser capaz de reflexão e de prudência. Espera-se que se não deixe cegar pela influência judaica baseada sobretudo no dinheiro e na comunicação social dos EUA e de Israel.
Se isso acontecer, isto é se não for capaz de levar Israel a paz justa com os palestinianos, Barak Obama não levará a bom termo a luta contra os movimentos religiosos fundamentalistas islâmicos.

A religião islâmica e a política global hoje

A religião islâmica e a política global hoje


António Bica

Os Estados Unidos da América do Norte (EUAN) tornaram-se, durante o século 20, a maior potência mundial. Com a Primeira Grande Guerra (1914-1918) ganharam supremacia em relação à Inglaterra e à França. Com a Segunda Grande Guerra (1939-1945) afirmaram o domínio na Europa, com excepção da União Soviética.
Com a posterior desagregação da União Soviética por apodrecimento interno na década de 1980 deixaram os EUAN de ter quem se oponham de modo eficaz aos seus interesses. Durante a chamada guerra fria entre os EUAN e a União Soviética, os EUAN usaram o fundamentalismo religioso seguido na monarquia da Arábia Saudita, que protegem e dominam, para o opor aos nascentes movimentos laicos e progressistas nos países islâmicos.
O governo dos EUAN substituiu no Médio Oriente, depois do fim da Segunda Grande Guerra, o domínio imperial da Inglaterra. Interessava-lhe dominar os governos da região para controlar o petróleo e proteger os judeus instalados na Palestina ao abrigo da Declaração Balfour. Apoiou para isso os regimes conservadores autocráticos do Egipto, da Líbia, do Iraque, da Jordânia, da Arábia, dos Emiratos.
No Irão de monarquia constitucional, em 1953, depois de o progressista Mossadegue ter ganho as eleições legislativas, os norte americanos, com colaboração inglesa, conspiraram e agiram para derrubar o governo então eleito e entregar o poder político ao rei que passou, sob controle norte americano, a governar despoticamente o país até ao fim da década de 1970.
No Egipto o movimento de jovens militares laicos e progressistas derrubou, no início da década de 1950, a monarquia e fez, com Nasser, a reforma agrária, nacionalizou o Canal do Suez, defendeu o nacionalismo árabe e propôs-se apoiar o povo da Palestina expulso das suas terras pelos judeus e o Estado de Israel.
No Iraque o partido Baas seguiu o exemplo dos jovens militares egípcios, derrubando a monarquia instalada pelos ingleses depois da derrota dos turcos na Primeira Grande Guerra.
Na Líbia também um movimento de jovens militares, seguindo o exemplo egípcio, derrubou a monarquia.
Os governos norte americanos ficaram preocupados com o reforçar da frente árabe contra o estado de Israel, que entretanto, em 1948, se havia constituído, e as reivindicações dos novos governos progressistas e laicos que defendiam que os recursos nacionais, incluindo o Canal de Suez e o petróleo, fossem usados para desenvolver a riqueza nacional, a educação e a promoção da igualdade, incluindo das mulheres.
O governo norte americano sentiu ameaçados pelos regimes políticos progressistas árabes o que qualificava como seus interesses no Médio Oriente. E o regime monárquico autocrático e medieval da Arábia temeu ser derrubado. Ambos os governos se coligaram para combater os regimes que o nacionalismo progressista e laico árabe fez nascer no Médio Oriente a partir do inicio da década de 1950.
O combate foi organizado com base ideológica na corrente religiosa fundamentalista wahabita, que é a seguida no reino da Arábia, com direcção estratégica dos EUAN e apoio financeiro do reino da Arábia. Milhares de milhões de dólares foram mandados, sob orientação dos EUAN, pelo reino da Arábia, acompanhados de pregadores wahabitas do reino da Arábia, para os países árabes com regimes laicos progressistas.
Esses pregadores usaram o dinheiro para organizar, sob capa religiosa, as camadas sociais mais pobres e fanatizá-las contra o laicismo dos regimes dos seus países. Assim nasceram e se desenvolveram, desde o início da década de 1950, os movimentos político-religiosos fundamentalistas no Egipto (Irmãos Muçulmanos), no Iraque, na Síria, na Líbia e na Argélia, inspirados na corrente religiosa wahabita. Em recente entrevista ao jornal “Público” (15/2/2006) o perito em assuntos muçulmanos Barrie Wharton, que integra o Centro de Estudos Europeus da Universidade de Limerick (Irlanda) afirmou: «Muito importante é (conhecer-se) quem controla as mesquitas (nas cidades da Europa). Muitas são pagas pela Arábia Saudita. Muitos imãs (pregadores nas mesquitas) foram originalmente financiados pelo reino saudita.» O imã da mesquita londrina de Finsbury Park. Abu Haanza al-Masri, originário da Arábia Saudita, que perdeu um olho e as duas mãos no Afeganistão a lutar com apoio e financiamento dos EUAN, foi recentemente condenado na Inglaterra a sete anos de prisão por incitamento a assassínio e ao ódio.
Quando, na monarquia constitucional do Afeganistão, na década de 1970, os partidos progressistas, entre eles o Partido Comunista, ganharam as eleições, os Estados Unidos da América do Norte e o reino da Arábia enviaram dinheiro e pregadores wahabitas para combater o novo governo. À instabilidade política que assim foi criada respondeu o governo afegão, em que o Partido Comunista tinha grande peso, com pedido de apoio militar à União Soviética, que não teve o senso político de o não prestar senão com armamento.
A entrada militar soviética no Afeganistão levou os EUAN e o reino da Arábia a recrutar jovens fundamentalistas religiosos nos países árabes e muçulmanos, onde haviam criado organizações político-religiosas de oposição aos regimes progressistas, e a treiná-los, armá-los e enviá-los para o Afeganistão.
Para a União Soviética foi o reverso do que fora o Vietnam para os EUAN.
O originário do reino da Arábia, Bin Laden, religioso fundamentalista wahabita, foi um dos enviados para recrutar, doutrinar e treinar jovens combatentes islâmicos fundamentalistas.
Acabada a guerra no Afeganistão contra o regime progressista e os soviéticos, no fim da década de 1980, o Iraque, no início da década de 1990, ocupou militarmente o Queite, emirato árabe grande produtor de petróleo. O vizinho reino da Arábia sentiu-se ameaçado. Os EUAN consideraram que o controle político pelo Iraque de tão grandes reservas de petróleo, como são as do Iraque somadas às do Queite, poderia ser perigoso para os seus interesses, não obstante o regime iraquiano de Sadam, embora de origem progressista e laica, se ter posto, no início da década de 1980, ao serviço dos norte americanos para combater o regime clerical xiita do Irão.
Era necessário, para combater o governo do Iraque, instalar bases militares americanas no reino da Arábia. O rei da Arábia aceitou e os fundamentalistas religiosos wahabitas não se opuseram, porque a acção militar era contra o regime iraquiano de matriz progressista e laica.
Os iraquianos foram expulsos do Queite, mas os soldados norte americanos não abandonaram o reino da Arábia. A corrente mais rigorosa do fundamentalismo árabe wahabita, a que pertence Bin Laden, passou a opôr-se a que as tropas americanas continuassem a ocupar o reino da Arábia após a guerra de 1991 contra o Iraque por não serem de religião islâmica.
Assim começou a criar força e organização e a voltar-se contra os EUAN a corrente político-religiosa wahabita mais fundamentalista chefiada por Bin Laden, que anteriormente havia estado ao serviço da política norte americana no Médio Oriente.

Notas sobre o mundo islâmico (3)

Notas sobre o mundo islâmico (3)

António Bica

Foi curta a dinastia dos califas Omeidas que tinham capital em Damasco da Síria. Em 750 Abu Abas, descendente de Abas tio do profeta Muhámade fundador da religião islâmica, então governador de uma região da Pérsia, pôs fim à dinastia Omeida, matou os seus descendentes, com excepção de um, que conseguiu fugir para a Espanha, e passou a capital do califado para Bagdade, na margem do rio Tigre, na Mesopotâmia, hoje o Iraque. O mais notável califa abássida foi Harum Alrachide referido em muitos dos contos das Mil e Uma Noites.
Pouco a pouco o poder político no extenso território do califado foi-se diluindo. A Espanha islâmica, o Al-Andalus, tornou-se independente sob a chefia do último omeida, Abderramã, que conseguira fugir da matança da família pelos novos califas abássidas. A região da Mauritânia separou-se do califado de Bagdade, passando a ser governada por descendentes de Fátima (filha de Muhámade) e de Ali, que se intitularam califas. Esta dinastia, chamada Fatimida, alargou o domínio até ao Egipto que governou até ao fim do século 12.
No século 10 os califas de Bagdade, nas extensas regiões do califado, já só detinham poder simbólico. Os turcos seldjúcidas haviam descido da região de Samarcanda para as terras persas do Korassã. Tomaram depois Bagdade que governaram com o título de sultões sem destronar os califas Abássidas, cujo poder se tornou mera fonte de legitimação para os senhores dos múltiplos territórios islâmicos autónomos que não se haviam proclamado califados.
O Império Romano do Oriente manteve a capital em Constantinopla e o largo território da Ásia Menor, hoje Turquia, até à chegada dos turcos seldjúcidas a partir do Korassã, na Pérsia, que, pouco a pouco, se apoderaram do território da Ásia Menor até então parte do Império Romano do Oriente.
Entretanto na Europa ocupada pelos bárbaros germânicos desenvolveu-se a produção agrícola, as cidades começaram a desenvolver-se, o comércio pouco a pouco renasceu. Este desenvolvimento da economia europeia fez ressurgir a procura dos míticos bens do oriente (da Índia e da China), que durante o Império Romano chegavam em abundância à posse dos mais ricos.
No governo dos califas Abássidas o Médio Oriente prosperou com o comércio, primeiro entre o oriente e o Império Romano do Oriente e depois com a Europa Cristã por intermediação das repúblicas marítimas e comerciais italianas: Veneza, Génova e outras. Esse comércio era a base da prosperidade económica do mundo islâmico do Médio Oriente nas Mil e Uma Noites, a principal obra literária árabe da Idade Média, os mercadores são das mais frequentes personagens dos contos.
Na Espanha o califado de Córdova consolidou-se e prosperou na agricultura, no artesanato, na construção, na literatura e nas demais artes, até ao princípio do século 11, em que se desintegrou nos pequenos reinos de Taifas demasiado fracos para resistir ao avanço dos reinos cristãos do norte. 
Pelo fim do século 11 e início do século 12 o mundo islâmico sofreu a primeira grande ofensiva militar da Europa cristã: Na Península Ibérica os reinos cristãos estenderam-se para sul e os reinos cristãos da Europa Central e da Itália invadiram a faixa litoral do Mediterrâneo Oriental com as Cruzadas, do que em próximo texto se escreverá.

Notas sobre o mundo islâmico

Notas sobre o mundo islâmico (4)

António Bica

Com o fim do século 11 e o início do século 12, pela altura em que Portugal ainda se não autonomizara de Leão e Castela e era governado pelo Conde D. Henrique e a mulher D. Teresa, o mundo  islâmico entrou em crise.
Da região de Samarcanda, nordeste do actual Irão, os povos turcos convertidos ao islamismo desceram para o território da Pérsia islâmica, estenderam-se até à Mesopotâmia e avançaram para a Ásia Menor (actual Turquia) cujo território conquistaram ao Império Romana do Oriente com capital em Constantinopla.
O poder dos califas de Bagdade enfraqueceu, tornando-se progressivamente pouco mais que nominal e referência de unidade religiosa. Entretanto a Europa cristã submetida a Roma cresceu em população.
O comércio desenvolveu-se progressivamente e as cidades, que haviam a maior parte da população em consequência das invasões bárbara, cresceram pouco a pouco.
As cidades autónomas da Itália prosperaram com o comércio no Mar Mediterrâneo, trazendo para a Europa as mercadorias orientais que chegavam em caravanas aos portos mediterrânicos islâmicos (Alexandria, Tiro e outros).
A cobiça europeia pelo rico comércio desses portos levou os dirigentes europeus, instigados pelo papa, a tentar apoderar-se dele com o pretexto da conquista de Jerusalém.
Foi essa a semente das sucessivas cruzadas, que levaram à conquista de Jerusalém e dos principais portos do oriente mediterrânico. Iniciaram-se pelo começo do século 12 e prolongaram-se até meados do século 13, quando a contra ofensiva islâmica expulsou os cruzados.
Nos meados do século 13 os mongóis invadiram a Pérsia e chegaram à Mesopotâmia, onde puseram fim ao califado. Entretanto os turcos haviam conquistado a Ásia Menor, consolidado aí o seu poder e islamizado e aculturado a população, e, com o fim do califado, alargaram progressivamente o seu poder à Mesopotâmia, à Síria, ao Egipto e à parte oriental do norte de África, sem terem aculturado as populações desses territórios.
A Pérsia resistiu ao domínio turco, mantendo a independência política e autonomizando-se religiosamente com a adesão do poder à corrente religiosa xiita, que se tornou a dominante na Pérsia (hoje Irão), afastando-se da corrente religiosa sunita seguida pelos turcos.
Com a derrota dos cruzados e a unificação política islâmica sob o domínio turco, o comércio voltou a prosperar no mundo islâmico trazendo as mercadorias orientais para os portos mediterrânicos do oriente, onde as cidades italianas e depois catalãs os compravam para a Europa.
A prosperidade económica e a estabilidade política do mundo islâmico sob domínio turco levou os turcos a completar a conquista, nos meados do século 15, do que restava do Império Romano do Oriente na península balcânica, o que culminou com a queda de Constantinopla, que passou a ser a capital do Império Turco.   

A religião islâmica

A religião islâmica e a tolerância


António Bica

É frequente cristãos afirmarem que a religião islâmica é intolerante e fanática. O fanatismo e a intolerância não é da religião islâmica nem da cristã, mas dos chefes islâmicos e dos chefes cristãos que demasiadas vezes fanatizam os crentes para servir os seus interesses de domínio social, económico e político.
Se o islão se expandiu no século 7º e se alargou por todo o sul mediterrânico do Império Romano foi porque praticava a tolerância. Se os chefes religiosos e políticos do islão tivessem sido então intolerantes na Península Ibérica não restariam, depois da conquista dela cristãos. E restaram. A grande maioria do povo da Península Ibérica manteve-se cristão até à reconquista, cerca de 600 anos depois.
O que aconteceu na Península Ibérica aconteceu nas demais regiões conquistadas pelos islâmicos ao Império Romano cristão. Ainda hoje cerca de 10% da população no Egipto, na Palestina, na Síria e no Iraque é cristã apesar destas regiões terem sido conquistadas pelos islâmicos no século 7º. E no Líbano é cristã cerca de 50% da população.
A mesma tolerância foi usada com as populações islâmicas da Península Ibérica depois da reconquista cristã? Não foi. No século 15 e no século 16 foram expulsos de Portugal e da Espanha todos os que, sendo islâmicos, não se converteram ao cristianismo.
Quem fez as guerras das Cruzadas entre o fim do século 10 e o fim do século 13? Foram os cristãos europeus contra os islâmicos, na terra dos islâmicos, não os islâmicos contra os cristãos.
Apesar da Europa ser intolerante contra os islâmicos e outras religiões nos séculos 15, 16 e 17, os islâmicos turcos conquistaram os territórios balcânicos, na Europa, a começar por Constantinopla, capital do Império Romano do Oriente. Ocuparam a Grécia, a Bulgária, a Roménia, a Sérvia, o Montenegro, a Croácia, a Eslovénia. Só no século 19 e princípios do século 20 essas regiões se tornaram independentes dos turcos islâmicos, mantendo-se as suas populações cristãs, como hoje são.
Se o cristianismo se manteve nessas terras durante tantos séculos, apesar de poder político ser islâmico, foi porque os islâmicos eram tolerantes e não fanáticos religiosos.
O discurso de intolerância islâmica, que cada vez mais se houve na Europa e nos Estados Unidos da América do Norte, não serve a Humanidade, mas para justificar guerras e agressões contra os países islâmicos.   

O mundo islâmico


O mundo islâmico (2)

António Bica

O extenso mundo islâmico  em 100 anos  alargou-se dos Pirinéus à Índia, incluindo a Espanha, o norte de África, o Médio Oriente (com excepção da Turquia), a Pérsia (hoje Irão) até às margens do rio Indo, na Índia.
Neste longo espaço as chefias árabes e convertidas ao islamismo forma muito tolerantes. Cada povo conquistado podia seguir a sua religião (com maior tolerância para os cristãos e os judeus), gozar de larga autonomia e conservar os seus costumes.
As trocas comerciais que os bárbaros germânicos do norte eliminaram na Europa que ocuparam mantiveram-se assinadas no mundo político do islão. Os muito dirigentes políticos, militares e administrativos que se tinham acabado de converter ao islamismo para conservar poder e riqueza continuaram a cultivar o latim na Espanha e no norte de África até à Líbia e o grego na Líbia e no Médio Oriente e a estudar os filósofos gregos e latinos, com especial destaque para Aristóteles. Os originários da Pérsia e da Índia trouxeram para o mundo islâmico os avançados conhecimentos matemáticos da Índia.
O Centro político deste mundo islâmico estabeleceu-se, com os califas Abássidas, em Bagdade, hoje capital do Iraque no largo e fértil Vale dos rios Tigre e Eufrates. O mundo islâmico nos séculos 7º, 8º, 9º e 10º era espaço de liberdade, de desenvolvimento de ideias, de alargamento do conhecimento e sobretudo de intensa actividade comercial entre a Índia e a China (a oriente) e a Europa ocupada pelos bárbaros germânicos (a ocidente). Esse comércio de pimenta, de canela, de incenso, de seda, de benjoim, de almíscar, de panos finos, porcelana, de lacas tornou o mundo islâmico próspero e desenvolver a sua cultura o que sempre acontece quando a riqueza cresce e se estabiliza.
Na Europa de então a parte rica e culta era a Espanha islâmica com o califado de Córdoba. Aí iam estudar os mais curiosos sábios da Europa do Centro e do norte.     

Evolução política no Paquistão

A evolução política no Paquistão e as dificuldades crescentes dos E.U.A. no Médio Oriente

António Bica

Em 3 de Novembro de 2007 o general Pervez Musharraf, Presidente e Chefe do Exército do Paquistão, suspendeu a aplicação da Constituição, demitiu os juizes do Tribunal Supremo, reprimiu manifestações de protesto e mandou prender mais de meia centena de pessoas, entre elas o presidente dos advogados paquistaneses.
O governo norteamericano do presidente Bush reagiu com cautela e, na linha dos norteamericanos, fizeram o mesmo o governo inglês e o chefe da diplomacia da União Europeia, Xavier Solana.
Porque reagiram os norteamericanos com cautela?  
Porque o general Pervez Musharraf do Paquistão tem sido o grande aliado do governo dos E.U.A.N. contra a militância religiosa mussulmana de largas camadas populacionais paquistanesas que levou os Talibans ao poder no Afeganistão e se tem vindo a opor com persistência à estabilização política no Afeganistão e, no Paquistão, ao domínio político do general Pervez Musharraf.
O Paquistão é a parte da Índia onde a maioria indianos de religião islâmica, quando a Índia se libertou do domínio colonial inglês, optou por criar um estado independente que designou por Paquistão. Essa decisão levou a forte reacção dos indianos não mussulmanos e dos mussulmanos, com expulsão de grande número de habitantes de minorias religiosas, quer na parte que passou a ser o Paquistão, quer na parte restante, a Índia actual.
Embora as religiões, em regra, assentem sobre princípios de paz [lembre-se que a saudação corrente islâmica é salam (paz) e a cristã também (a paz seja contigo)], a verdade é que é à volta delas que se acendem os maiores ódios e se desencadeiam as mais vastas matanças. A razão disso assenta nas estruturas religiosas de poder que são levadas a combater pela submissão e o controle das consciências das pessoas e pela ideia, nas religiões monoteistas, de que os seus fundamentos religiosos assentam na palavra de Deus.
Não se podendo Deus enganar nem corrigir, por ser omnisciente, cada relegião acusa as outras de serem falsas. Por todas estas razões a população paquistanesa, que é islâmica, conserva, desde a independência, há cerca de 60 anos, fortes sentimentos de hostilidade às outras religiões especialmente a indú e as cristãs.
O governo dos E.U.A.N., desde que, na década de 1950, a Índia integrou a frente dos países do terceiro mundo recentemente libertados do domínio colonial que lutavam pelo desenvolvimento e a equidistância em relação aos E.U.A.N. e à União Soviética, passou a manter distância em relação à Índia e a encorajar, embora de modo não ostensivo, a hostilidade de base religiosa do Paquistão em relação à Índia. E, quando a União Soviética cometeu o erro, no início da década de 1980, de enviar o exército para o Afeganistão a combater ao lado dos partidos progressistas, então no poder, contra os partidos religiosos conservadores e obscurantistas, o governo dos E.U.A.N. deu todo o apoio em dinheiro, informação e armamento ao Paquistão para reforçar o combate ao regime progressista afegão, recrutando para isso jovens combatentes fundamentalistas em todos os países islâmicos, e, mais do que isso, fornecer ao Paquistão conhecimentos, meios financeiros e tecnológicos para construir bombas atómicas.
Com a destruição das torres em Nova Iorque, em 11 de Setembro de 2001, o governo dos E.U.A.N. inverteu a política de apoio ao islamismo fundamentalista, extremista e belicoso, quer porque a União Soviética colapsara em 1990 e portanto já não precisava dele para atacar os soviéticos, quer porque atribuiu a destruição das torres novaiorquinas (supõe-se que com razão) ao islamismo radical organizado à volta da Alcaida. Seguiu-se, em retaliação, a guerra no Afeganistão pelos E.U.A.N., que está longe de estar ganha. Depois, em Março de 2003, foi a guerra no Iraque (para controlar as grandes jázidas de petróleo do país), que está também longe de estar ganha.
O governo dos E.U.A.N. obrigou o presidente do Paquistão a dar-lhe apoio na guerra contra o fundamentalismo islâmico no Afeganistão com a ameaça de que, se o não fizesse, faria, com ataques militares, regressar o país à idade da pedra.
O Pervez Musharraf foi assim obrigado a seguir orientação política contra a corrente radical fundamentalista islâmica dominante no país. As contradições foram por isso crescendo. Musharraf estava, em Outubro de 2007, em risco de perder o poder. Optou por o não correr, suspendendo a Constituição, prendendo os adversários políticos, reprimindo as manifestações de protesto.
O governo dos E.U.A.N., apesar da medida ostensiva contra os princípios democráticos, reagiu com brandura. Não pode de deixar de se mostrar preocupado com a suspensão da Constituição, mas não condenou o golpe.
Se Pervez Musharraf for afastado o poder no Paquistão e os fundamentalistas islâmicos controlados pela Alcaida ou nela inspirados acederem a ele, o governo dos E.U.A.N. estará em grandes dificuldades. A Alcaida passará a dispor de poderoso armamento nuclear, calculando-se que com cerca de 35 bombas atómicas.
As aventuras “cowboy” de Bush no Médio Oriente, neste princípio do século 21, poderão estar a dar para o torto. Israel que se cuide.  A sua arrogancia de há 60 anos na Palestina poderá vir a sofrer resposta amarga. E, pior do que isso, a intolerância de raiz religiosa no mundo poderá vir a pôr em causa os princípios: da democracia, da liberdade de pensamento, de expressão, de religião, de igualdade entre homens e mulheres.

O Irão está a revelar transformação política

O Irão está a revelar transformação política indiciadora de mudanças


António Bica

            A última eleição presidencial no Irão revelou estar o país politicamente activo, confrontando-se duas tendências: uma defensora dos valores religiosos, na concepção tradicional, receosa de mudanças e de abertura ao exterior, temerosa da influência das mulheres na vida pública e na economia, procurando manter a tutela religiosa sobre o regime e talvez reforçá-la; outra que quer modernizar o Irão, que as mulheres tenham no país função igual à dos homens, abri-lo ao mundo, aprofundar as instituições democráticas, reduzir e talvez acabar com a tutela político-religiosa sobre o regime.

            Como se sabe, o Irão foi, desde 1953, ano em que a CIA, em colaboração com os serviços secretos ingleses, derrubou o regime democrático então chefiao por Mossadegh, até 1979, em que o regime autocrático do Xá Reza Pahlevi foi derrubado por revolução popular, governado sob tutela dos EUA.
            Desde 1979 o Irão tem sido fortemente hostilizado pelos governos dos EUA. O actual presidente Obama baixou o nível de agressividade política, mas mantém-na.
            O movimento revolucionário iraniano que instituiu a república em 1979 fundou-se na luta contra a injustiça social do regime autoritário e repressivo do Xá e o domínio económico e a influência cultural dos EUA. Para melhor mobilização popular contra o Xá e a influência dos EUA foi, pelo movimento revolucionário, feito apelo aos valores religiosos xiitas tradicionais.
            Com a vitória da insurreição popular, as estruturas religiosas, que tiveram função de relevo na mobilização e no enquadramento populares contra o Xá, passaram a liderar o novo regime republicano.

            Como se sabe, o Irão é maioritariamente de religião islâmica xiita, que diverge da corrente maioritária sunita por sempre ter defendido que a liderança política e religiosa islâmica deve pertencer aos descendentes do profeta Maomé pela sua única filha, Fátima.
No Islão as lideranças política e religiosa sempre se confundiram sob a mesma chefia por a religião ter tido origem nos ensinamentos do profeta Maomé, que era simultaneamente chefe político e religioso dos que acreditavam na sua doutrina, que muito cedo se retiraram para a pequena cidade árabe de Medina, onde Maomé passou a ser simultaneamente chefe político e religioso.
Com a morte de Maomé, que deixou um único descendente, a sua filha Fátima, foi, entre os seus seguidores mais próximos, muito discutida a sua sucessão. Por não ter então descendente masculino, mesmo que neto, optou a maioria dos seguidores do profeta por escolher, para chefiar os crentes islâmicos, um de entre eles.
            A corrente minoritária não se conformou e defendeu que a chefia da comunidade dos crentes islâmicos, que passaram a designar por Umma, deveria caber aos descendentes masculinos do profeta Maomé. Quando o filho de Fátima, neto do profeta, Hussein, se tornou adulto, tendo havido escolha de novo chefe político e religioso dos crentes, Califa na designação árabe, os partidários de Hussein consideraram que não havia que fazer nova escolha por Hussein ser chefe político e religioso natural por direito hereditário.
O desentendimento deu origem a guerra entre os partidários de Hussein e do novo califa escolhido pela facção maioritária. Hussein foi derrotado e morto e massacrada toda a sua família na tentativa de eliminar definitivamente a corrente que defendia que só os descendentes do profeta têm legitimidade para liderar política e religiosamente a Umma, comunidade dos crentes.
            Esta corrente política e religiosa passou a designar-se por xiita, que, tendo embora sido muito enfraquecida por essa derrota e o massacre, retomou vigor no Irão, a antiga Pérsia, que, tendo antiga cultura própria, embora tenha aceitado o islamismo, se opôs tenazmente a ser dominada política e religiosamente pelo califado que teve sede primeiro em Damasco e depois em Bagdade.
            Porque foram chacinados todos os descendentes do profeta, os xiitas consideram que a liderança politica e religiosa da comunidade dos crentes, está desde então vaga até um dia, no fim dos tempos, ressurgir algum miraculosamete salvo descendente do profeta para finalmente repôr a legitimidade do poder político e religioso na comunidade dos crentes no Islão. É, curiosamente, um mito como em Portugal foi o de D. Sebastião a ressurgir em manhã de nevoeiro para animar os que não queriam a integração de Portugal na Espanha.
            O xiismo serviu assim os governantes do Irão que desse modo legitimaram a sua insubmissão política e religiosa ao califado de Bagdade.
            Até à vinda, no fim dos tempos, do chefe legítimo descendente do profeta, a liderança política e religiosa da comunidade dos crentes está, para os xiitas, vaga, não devendo por isso concentrar-se as duas lideranças numa só pessoa por só o descendente do profeta que há-de um dia vir ter legitimidade para isso.
            Assim, no xiismo, ao contrário do sunismo, o poder religioso não deve coincidir com o poder político, até que um dia ressurja um descendente do profeta.

            Com a revolução no Irão, em 1979, apesar da forte influência nela do poder religioso, não se assumiu ele como titular do poder político. Como a monarquia persa, com o último Xá derrubado em 1979, se havia politicamente submetido ao poder dos EUA, assim se descredibilizando, a revolução aboliu-a e institucionalizou o regime republicano que procurou legitimar com a sua actual Constituição, o que é revolucionariamente inovador no mundo islâmico, com definição do poder por eleições, por voto universal e periódico, de quem exerce o poder e reconhecimento da igualdade entre homens e mulheres em consequência do papel central da única filha, Fátima, na transmissão biológica do poder.

            Por a revolução de 1979 ter tido forte participação laica, a liderança religiosa, procurando opor-se à laicização da sociedade, recorreu a figura semelhante
à adoptada em Portugal, pela Constituição de 1976, com o Conselho da Revolução, para tutelar o regime e evitar que caísse em desvios.

            No Irão essa função tutelar passou a ser desempenhada por conselho de religiosos eleitos que designam um chefe. A corrente política que actualmente quer modernizar o Irão confrontou-se em 2009, nas eleições do presidente da República, com a corrente que quer manter o país amarrado aos valores religiosos tradicionais.
            A corrente inovadora não aceitou a derrota considerando que as eleições foram manipuladas e não livres. A que defende os valores religiosos tradicionais respondeu com repressão, que continua.

            Estão assim criadas condições para mudanças políticas no Irão. Quem vai ganhar o confronto nos tempos próximos não é seguro, podendo a força repressiva de que dispõem os tradicionalistas impor o seu domínio. Mas a prazo a sorte está lançada: os que se opõem à inovação e à abertura ao mundo estão seguramente derrotados. A tutela religiosa sobre a estrutura política actualmente definida no Irão por eleição universal dificilmente sobreviverá.

           


A atitude dos EUA e da UE em relação ao Irão

A atitude dos EUA e da UE em relação ao Irão tem paralelo com a que foi adoptada em relação ao Iraque
 António Bica

            As últimas eleições presidenciais no Irão mostraram que o país está política e socialmente activo. A população, especialmente a que cresceu sob a República Islâmica do Irão que sucedeu em 1979 à ditadura do Xá Reza Pahlevi controlada pelos EUA, é hoje muito mais instruída. Com a república islâmica o Irão tem nova constituição na linha da do regime constitucional que em 1953 a CIA derrubou impondo o Xá como rei absoluto e por via dele assegurando o controlo do petróleo iraniano.
            Ao contrário do que a máquina de informação global dos EUA em que muitos judeus têm poderosa influência quer fazer acreditar à opinião mundial, o Irão não é uma ditadura militar. É regime republicano constitucional embora confessional islâmico xiita, em que o poder a todos os níveis é conferido por eleições periódicas, incluindo dos membros do Conselho Religioso que elegem entre si o supremo líder religioso.
            O Conselho Religioso tem no Irão função política constitucional semelhante
à que teve em Portugal o Conselho da Revolução a seguir ao 25 de Abril, garantindo que os princípios e os valores políticos defendidos pela revolução não sejam subvertidos. E as mulheres não são discriminadas no Irão, sendo maioritária nas escolas, incluindo nas universidades, e em várias profissões. A situação política e social no Irão é muito mais avançada do que a existente na generalidade dos países islâmicos sunitas que os EUA protegem, como a Arábia Saudita, o Egipto e o Paquistão. O Irão está a avançar política e socialmente em consequência do desenvolvimento do ensino generalizado em todos os graus a toda a população e do consequente desenvolvimento económico. Esse desenvolvimento gera tensões sociais e políticas com os consequentes avanços e recuos.
            Agora parece estar o Irão mais progressista em fase de recuo. As forças mais conservadoras do ponto de vista religioso e político estão a procurar refrear a evolução.
            Os EUA e a União Europeia não parecem estar a entender o processo político do Irão, seguindo as intransigentes posições de Israel, que dispõe de numerosas bombas atómicas e defende a destruição por bombardeamento das instalações nucleares que o Irão sempre afirmou destinarem-se a fins pacíficos em conformidade com o Tratado Internacional de Não-Proliferação Nuclear que subscreveu.
            Os últimos desenvolvimentos do caso respeitam ao uso de material nuclear para fins médicos, sobretudo para tratamento de tumores cancerosos, de que o Irão não dispõe. Porque é necessário que para isso o material nuclear seja enriquecido a 20%, muito longe dos 90% necessários para a produção de bombas atómicas, percentagem essa superior à necessária para produção de electricidade, o Irão propôs que lhe fosse fornecido, em pequenas quantidades, em troca de material nuclear enriquecido a 3,5% que tem estado a produzir em proporção das pequenas quantidades enriquecidas a 20% necessárias para fins médicos.
            Como os EUA e a UE querem privar o Irão do material radioactivo de que dispõe propuseram em 21 de Outubro de 2009 que o Irão enviasse previamente 75% do material radioactivo enriquecido a 3,5%, para só depois receber material radioactivo enriquecido a 20% se provasse sem lugar a dúvidas não ter intenção de o utilizar para fins militares, prova que, sendo de facto subjectivo e negativo, é impossível de fazer. O Irão não aceitou as condições e em 7 de Fevereiro de 2010 iniciou procedimentos para obter material radioactivo enriquecido a 20% para ser usado em fins médicos. Seguiu-se a habitual negociação liderada pelos EUA e a UE para impôr no Conselho de Segurança da ONU sanções contra o Irão. A Rússia, provavelmente a troco de concessões estadunidenses e europeias, poderá, embora não seja certo, viabilizar as sanções. A China parece estar mais relutante mas não é impossível que ceda em troca de concessões que se lhe afigurem vantajosas. Israel, que sempre se recusou com o beneplácito dos EUA a cumprir todas as resoluções do Conselho de Segurança da ONU, para restituir aos palestinianos a terra que ocupa, assiste ao desenrolar das pressões políticas para enfraquecer o Irão, porque o Irão no mundo islâmico, apesar de religião xiita e de os palestinianos serem sunitas, é o mais destacado e firme defensor do direito de os palestinianos viverem na sua terra, a Palestina, livres de Israel.
            A atitude dos EUA e da UE em relação ao Irão na questão da energia nuclear tem paralelo na que foi adoptada pelo presidente Bush em relação ao Iraque no início da década de 2000 – provem que não têm meios militares de destruição maciça para não haver guerra. Sendo a prova negativa, os EUA e a Inglaterra sempre a consideraram insuficiente, que o que queriam era ocupar militarmente o Iraque e apropriar-se do seu petróleo. Veremos o desenrolar no Irão dos próximos acontecimentos, embora se possa ter como muito provável que nem os EUA atacarão militarmente o Irão nem autorizarão Israel a fazê-lo. A amarga lição da insensata guerra contra o Iraque parece ter sido aprendida.