sábado, 22 de janeiro de 2011

A PROPÓSITO DE VIAGEM A CUBA E DAS ANUNCIADAS REFORMAS POLÍTICAS E ECONÓMICAS

19/6/2007 A PROPÓSITO DE VIAGEM A CUBA

Considerações sobre Cuba a propósito de viagem em 2007 e das anunciadas reformas políticas e económicas


António Bica



Em viagem a Cuba em 2007 pareceu-me, pelo que vi, li e falei com habitantes, que o país resolveu no essencial e a nível considerável bom os problemas de educação e saúde, que são gratuitos para toda a população e têm qualidade. Os crimes violentos são raros, havendo razoável segurança nas ruas, mesmo de noite.
A cidade de Havana tem 2,3 milhões de habitantes. O alojamento é encargo pequeno (até 5% do salário mensal) e as necessidades básicas de alimentação são asseguradas por quota alimentar (por pessoa) vendida a preço bastante baixo.
Asseguradas as necessidades básicas da população (alojamento, alimentação, saúde e educação) não restam aos cubanos grandes recursos para outras despesas. São poucos os carros e, dos que há, um bom número tem 20 ou 30 anos. Apesar disso a frota de taxis parece suficiente. Muitas casas aparentavam pelo exterior precisar de pintura e de reparação.
A impressão colhida é de sociedade remediada e fraterna com as necessidades básicas resolvidas a nível muito mediano, sem grandes desníveis. É grande o contraste com o que se conhece da generalidade dos países da América Latina, onde muitas crianças vivem ao abandono, há muita criminalidade violenta e a riqueza e a ostentação dos bairros das elites se exibe ao lado da flagrante miséria das favelas, dos morros, dos bairros de lata.

A Revolução Cubana foi feita na passagem da década de 1950 para a de 1960, há mais de 50 anos. A maioria da população portuguesa, incluindo as camadas mais instruídas, não tem memória do país que era Cuba então. Governada, ou, melhor, desgovernada por Fulgêncio Baptista, ditador que disponha do país como se fosse coutada sua, era como que o quintal das traseiras dos EUA, que estão a poucas dezenas de milhas a norte, e dominavam a economia e a política cubanas. A Máfia norte-americana tinha aí, no hoje nacionalizado Hotel Nacional, o seu quartel-general e grande casino, onde mandavam os seus principais cabecilhas, entre eles o conhecido Lucky-Luciano. O povo vivia na miséria, vendendo, se tinham quem os contratasse, por baixos salários a sua força de trabalho nos campos de cana de açúcar aos norte-americanos e as suas filhas a prostituir-se na cidade de Havana.
A Revolução restituiu a dignidade ao povo cubano e foi chama animadora para que a América Latina iniciasse o lento caminho da emancipação dos EUA.

Apesar dos Estados Unidos da América do Norte desde então boicotarem quanto podem a economia cubana, o país resiste. A preocupação com a justiça social do regime político e a forte base ética assente na vida modesta dos dirigentes legitimam o regime aos olhos da maioria da população. Mesmo em períodos difíceis, como o que se seguiu a 1990 com o colapso dos países socialistas europeus, tendo o produto interno bruto caído então 35%, a unidade à volta dos dirigentes políticos não foi destruída. A direcção política soube dar resposta às graves dificuldades económicas, abrindo então ao investimento estrangeiro com empresas em parceria com o Estado Cubano sendo metade do capital de cada parte e admitindo que a população crie pequenas empresas familiares que não contratem outros trabalhadores. A economia cubana retomou com essas medidas o crescimento, procurando a política cubana manter o princípio de não haver cubanos a comprar  força de trabalho a outros cubanos. Por essa razão o regime não autorizava até agora que as empresas de cubanos recorram a outro trabalho que não o familiar.

Esta restrição tem impedido que os cubanos com maior iniciativa e criatividade impulsionem o desenvolvimento económico da sociedade. Pode estimar-se que numa sociedade cerca de 10% da população tem boa capacidade de iniciativa, de criatividade e de gestão, enquanto percentagem semelhante, no extremo oposto, não tem capacidade para governar a sua vida e produzir para as suas necessidades precisando de receber apoio da sociedade. Os restantes, cerca de 80%, são normais trabalhadores, muitas vezes excelentes, desde que bem enquadrados em organização produtiva. Dificultar que num país os cerca de 10% da sua população com criatividade, capacidade de iniciativa e de gestão desenvolvam as suas capacidades em actividades diversas, nomeadamente económicas, desde que respeitadas regras básicas de justiça, solidariedade social e equidade, faz diminuir a eficiência geral da sociedade em todos os campos, em especial no económico. A compra de força de trabalho e a consequente possibilidade de exploração económica, não pode ser erigido em tabu quando se pretende construir uma sociedade mais justa. Por medidas legislativas e outras é possível estabelecer normas e práticas que garantam os direitos dos trabalhadores e a observância da regra socialista básica de justiça: a cada um segundo o seu trabalho, sem deixar de se prestar o necessário apoio aos que dele necessitam de acordo com o nível geral de riqueza da sociedade.

Com a separação, no fim da Segunda Grande Guerra, da Alemanha em dois Estados, um, a República Democrática Alemã, organizado segundo princípios tidos por socialistas, outro, a Alemanha Federal, segundo as regras do capitalismo, tornou-se claro que grande número de trabalhadores da República Democrática Alemã teria ido trabalhar para a Alemanha Federal, onde os salários eram mais elevados, se não tivessem sido estabelecidas barreiras dificilmente transponíveis na fronteira entre os dois Estados, incluindo na cidade de Berlim (o chamado muro de Berlim).
Impõe-se concluir que a média dos trabalhadores prefere ganhar mais, mesmo sendo explorada, do que, hipoteticamente não o sendo, ganhar menos.

Há, por outro lado, que reflectir se é possível com eficiência, num Estado, regular centralmente toda a vida social, cultural e económica como se tentou sem êxito na União Soviética e nos países do “socialismo real”.
Uma sociedade humana é demasiado complexa para poder ser entendida por uma parte de si mesma em termos de essa parte ser capaz de dirigir o seu evoluir e funcionamento sem contradições.
Até agora as sociedades humanas evoluíram de forma não dirigida. O seu progresso tem resultado de leis que no último século e neste se têm procurado determinar. Mas estamos longe de conhecer todos os complexos mecanismos do funcionamento e do evoluir das sociedades humanas e provavelmente nunca se conhecerão completamente, não obstante o contínuo progresso nesse sentido.
É desejável que as sociedades evoluam sem roturas causadoras de grandes prejuízos e sofrimentos.
Não sendo possível determinar completamente o evoluir e o funcionamento das sociedades por não conhecimento suficiente da sua complexidade, a sua organização terá fundamentalmente que procurar facilitar os mecanismos de autocorrecção económica e social de maneira que as alterações se tendam a processar de modo gradual e imediato, ou quase imediato, com o mínimo de intervenção da autoridade pública e consequentemente sem roturas, que sempre são causadoras de sofrimento.
A autoridade pública terá que intervir fundamentalmente para, pela investigação, aprofundar o conhecimento das leis que regulam o funcionamento e o evoluir das sociedades e, na base desse conhecimento, aperfeiçoar continuamente os mecanismos sociais de autocorrecção. Só nos casos em que os mecanismos de autocorrecção não resolverem disfunções sociais e económicas é que se tornará preciso intervir para procurar resolvê-las e introduzir novos mecanismos de autocorrecção que, no futuro, solucionem o mesmo tipo de contradições.

Uma sociedade humana é assimilável a corpo humano vivo. À inteligência, que é a função superior do corpo, não compete regular cada uma das suas múltiplas e complexas funções, cujas leis a inteligência em grande parte desconhece. A função da inteligência em relação ao corpo é a de procurar resolver os problemas de funcionamento e desenvolvimento que os automatismos biológicos não são capazes de solucionar. A inteligência de cada homem não se ocupa do funcionamento dos diferentes órgãos do corpo (coração, aparelho digestivo, pulmões, rins, glândulas, etc.). Se, por exemplo, for necessária água no organismo, desencadear-se-á alarme da sede que vai obrigar a inteligência a perceber que tem que lhe ser fornecida água. O coração funciona sem que a inteligência se ocupe dele. Mas se surgirem dores provenientes do seu deficiente funcionamento, a inteligência actua de modo a que haja intervenção (remédios, dieta, etc.).

A compra por um indivíduo a outro da sua capacidade de trabalho não é necessariamente fonte de injustiça inaceitável, se for regulada por normas e práticas capazes de assegurar o razoável equilíbrio das prestações mútuas.
O que não é aceitável é o imposto pelas grandes empresas transnacionais sob o comando do governo dos Estados Unidos da América do Norte: O neo-liberalismo global está a tornar os países ricos cada vez mais ricos e os pobres cada vez mais pobres, e, nuns e noutros, os indivíduos ricos cada vez mais ricos enquanto a miséria, o crime, a insegurança e a poluição crescem.
Cuba está a procurar construir uma sociedade alternativa à dominante no mundo de hoje. São de saudar a sua vontade e a sua determinação. O caminho que está a seguir merece reflexão e sempre ajustamentos, que o que hoje é solução adequada com o desenvolvimento posterior deixada de o ser.


Em 2010 o governo cubano anunciou projecto de reforma do seu sistema económico, prevendo o alargamento da actividade privada  a significativo número de sectores da economia.
Prevê-se que grande número de trabalhadores do Estado opte por trabalhar em actividades económicas privadas.  É de esperar que, se a transição for razoavelmente planeada e posta em prática sem roturas sociais significativas, a economia cubana entre em apreciável desenvolvimento, porque a generalidade  dos cubanos beneficia de bom nível de ensino com formação profissional e todos beneficiam de  serviços de saúde de qualidade. Como se sabe,  o conhecimento e a saúde são dos principais factores da produtividade do trabalho.
Não é possível prever com segurança como a reforma vai ser posta em prática nem o grau de adesão pelos trabalhadores do Estado à passagem à actividade privada.  Isso vai depender da perspectiva de cada um sobre o benefício que terá ao deixar o trabalho no Estado e passar para a actividade por conta própria ou de outro  e do que vir que vier a suceder aos que primeiro se aventurarem a deixar a segurança do sector público da economia pelo privado. Se a reforma for bem planeada e posta em prática, é possível que Cuba venha a entrar em ciclo económico de desenvolvimento acelerado.


Se a reforma anunciada for bem sucedida, é previsível que Cuba inicie também processo de mudanças constitucionais que libertem a sociedade cubana da tutela de quem fez a revolução cubana e foi capaz de a consolidar.
Entende-se que os revolucionários que foram capazes dessa tarefa em condições tão difíceis de bloqueio económico, que persiste, e de invasão militar pelos EUA  receiem,  nessas condições que em grande parte subsistem,  pôr fim à tutela  sobre a política cubana. Mas há que ter em conta que nada é eterno, nada fica para sempre; a mudança é, em tudo, lei universal. A geração que fez a revolução inevitavelmente vai morrer.  A melhor garantia da salvaguarda dos valores da revolução cubana do início da década de 1960 é entregar ao povo, sem tutela, a liberdade de, por voto secreto, universal e periódico, eleger quem, por período certo e limitado, deve exercer o poder político. O povo cubano, que é dos mais instruídos do mundo, se se sentir viver em sociedade com economia em desenvolvimento,  dificilmente deixará, nessas condições, fugir o poder político das suas mãos. E o governo dos EUA, não obstante a sua vontade, que não abandonará tão cedo, de dominar politicamente Cuba, terá grande dificuldade em a dominar politicamente.
Não se pode deixar de ter em conta que a democracia é invenção política de sociedades com  razoável nível de riqueza gerada pelo comércio na antiguidade clássica. Tendeu a apagar-se depois quando o nível de riqueza diminuiu  fortemente. Ressurgiu com o incremento da riqueza proporcionado pelo desenvolvimento industrial e o avanço da instrução necessária a essa produção, e está a progressivamente a alargar-se à medida que  o desenvolvimento da riqueza se alarga pelo mundo.
Cuba tem população com elevado nível de instrução. Falta-lhe criar as condições para que tenha razoável nível de riqueza. Os revolucionários cubanos ainda vivos parece estarem, com as reformas económicas anunciadas, a querer que se criem as condições para que o povo cubano agarre o destino político do seu país nas mãos. Espera-se que sejam bem sucedidos, que, além do mais, a esse povo se deve o significativo  avanço dos países da América Latina para a emancipação dos EUA, a libertação do povo angolano do controle político pelo regime sul africano, a  independência da Namíbia e a libertação da África do Sul do regime de apartaide.

É experiência política a seguir com atenção, que, depois do colapso da União Soviética,  dos outros países do chamado socialismo real e da opção da China pelo sistema capitalista sob tutela do seu Partido Comunista, torna-se necessário procurar teorizar e delinear novo modelo para sociedades humanas mais justas e solidárias.





                                                                      

A CRISE ECONÓMICA ACTUAL, A REDUÇÃO SALARIAL E DAS PRESTAÇÕES SOCIAIS E A DEFEZA DO VALOR DO DINHEIRO ENQUANTO RIQUEZA

A crise económica actual está a acelerar a redução salarial e dos apoios sociais conquistados. Causas e perspectiva

António Bica

Com a consolidação da revolução socialista na Rússia, em 1921, o Partido Comunista, então liderado por Lenine, instituiu a NEP (Nova Política Económica) que, sem abdicar do controle pelo Estado das maiores empresas, do comércio externo e do sistema financeiro, deu, no mais, liberdade de produção, incluindo agrícola, industrial e de comércio. Na sequência da NEP, em 1928, a Rússia tinha recuperado os níveis de produção anteriores ao início da Primeira Grande Guerra.
Sob o controle por Staline do Partido Comunista Soviético foi, em 1928, nacionalizada quase toda a actividade produtiva soviética, o que, com base no reforço do centralismo democrático, e na forte mobilização política com imposição de severa disciplina administrativa na produção, tornou possível à União Soviética passar a investir anualmente 40% do produto interno bruto. Isso levou ao rápido reforço da base industrial da economia soviética, o que permitiu responder, a partir do oriente de Moscovo, ao rápido e inesperado (para Staline) avanço do exército alemão, iniciado em Junho de 1941, que esteve então próximo de destruir o poder soviético.
Com o fim da Segunda Grande Guerra e do período de reconstrução das enormes destruições causadas por ela os métodos e as práticas políticas iniciados por Staline em 1928 mantiveram-se.
Em 1953, depois da sua morte, sucedeu-lhe Krutcheve, que abrandou a severa disciplina administrativa no trabalho imposta por Staline, tendo sido incapaz de a substituir por disciplina  democrática nas unidades de produção, o que implicaria admitir que os seus trabalhadores beneficiassem havendo maior eficiência no trabalho e fossem prejudicados se a eficiência baixasse, o que nunca se quis ou soube pôr em prática.
No campo da organização política, não entendeu Krutcheve que a política de centralismo democrático, tal como foi posta em prática por Staline, com afunilamento do poder político no secretário geral do partido, tinha levado à eliminação da criatividade e da inovação política, que sempre tem que ser feita, que o evoluir das sociedades não é compatível com o imobilismo, e consequentemente à promoção do carreirismo, senão oportunismo, na procura por cada membro do partido de benefício económico próprio e de poder pessoal.
Depois de Krutcheve ter sido expulso do poder em 1963 pelo grupo liderado por Brejeneve, que dirigiu a União Soviética por cerca de 20 anos, o Partido Comunista Soviético também foi incapaz de corrigir os anteriores erros políticos e económicos. As consequências foram o progressivo amolecimento dos membros do partido nas vantagens pessoais económicas e de poder que tinham, o contínuo distanciamento do povo em relação ao poder e a progressiva ineficiência da economia, principais causas do colapso da União Soviética no início da década de 1990.
Os regimes dos países da Europa oriental, que, na sequência da Segunda Grande Guerra e da ocupação pelo Exército Soviético, adoptaram sistema político e económico semelhante ao da União Soviética, caíram pela mesma altura e pelas mesmas razões sem que os seus povos se empenhassem na sua defesa, nem mesmo os seus partidos comunistas.
Com a tomada do poder pelo Partido Comunista na Rússia em 1917, a progressiva, embora lenta, conquista do direito de voto por cada vez mais largas camadas sociais nos países onde a burguesia tinha o poder, as perturbações económicas, sociais e políticas que se seguiram à Primeira Grande Guerra, principalmente na Alemanha e na Itália, e a grande depressão económica de 1929, a burguesia, que até então havia defendido firmemente que o poder político deve resultar da expressão periódica e livre da vontade dos cidadãos e nesse princípio assentara a luta contra o poder senhorial da nobreza e dos monarcas absolutos, dividiu-se em duas tendências:
-a que continuou a defender os princípios políticos democráticos
-e a que passou a entender que a única maneira de segurar o poder político e económico nas suas mãos era abandonar os princípios políticos democráticos confiando o poder a quem autoritariamente o exercesse em benefício dela, disfarçando-se de socializante.
Na Itália, em Portugal, na Espanha, na Alemanha e noutros países foram, então, pela força, impostos regimes não democráticos. Nos países onde a burguesia continuou a defender a democracia, com relevo para os EUA e mais para a Inglaterra, foram feitas profundas reformas políticas e sociais favoráveis aos trabalhadores para evitar que o descontentamento popular, com as duras consequências da Primeira Grande Guerra e da grande depressão económica iniciada em 1929, levasse à perda do poder pela burguesia e à criação de sistemas políticos e económicos socialistas como acontecera na Rússia.
Na Segunda Grande Guerra defrontaram-se estas duas linhas políticas dos países em que a burguesia tinha o poder, tendo a fracção que manteve os princípios democráticos, com a decisiva entrada na guerra da União Soviética na sequência da sua invasão em 1941 pela Alemanha, saído vencedora.
Acabada a Segunda Grande Guerra os países vencedores de economia capitalista afrontaram a União Soviética no que passou a ser conhecido por Guerra Fria. Durante o longo tempo dela (1946 a 1990) os trabalhadores dos países capitalistas, sobretudo na Europa, beneficiaram anualmente de aumentos salariais, de cada vez melhor protecção no desemprego, na doença e na incapacidade para o trabalho, incluindo por idade, o que, acompanhado de outras medidas, em que avultou o hábil e intenso condicionamento da opinião pública por todos os meios (jornais, rádio, televisão, filmes, livros e outros), levou a que nesses países não fosse posto seriamente em causa o poder da burguesia.
Na década de 1980, o já então visível declínio da economia soviética, o insensato envolvimento do Exército Soviético na guerra civil no Afeganistão, o acesso ao poder na Inglaterra e nos EUA de defensores da agudização do confronto com a União Soviética (Tatcher e Reagan), a incapacidade do Partido Comunista Soviético para se revitalizar e renovar e o desentendimento, sequente à morte de Staline, entre o Partido Comunista da União Soviética e o Partido Comunista Chinês sobre a liderança do movimento comunista internacional levaram ao colapso da União Soviética e do regime da generalidade dos outros países socialistas no fim da década de 1980 e no início da de 1990, e à conversão da economia chinesa à organização capitalista da produção sem perda do poder pelo Partido Comunista Chinês.
Desde então ficou, nos países capitalistas, aberto o caminho para reduzir progressivamente os níveis salariais, os apoios no desemprego e na incapacidade para o trabalho por doença e idade e outros apoios sociais que a burguesia dos países capitalistas havia reconhecido após o início da grande depressão iniciada em 1929 e durante a Guerra Fria. Em consequência foi defendida e posta em prática, na Europa, a chamada flexibilização laboral, facilitando-se aos patrões o despedimento dos trabalhadores, e, a pretexto de os sistemas de segurança social se estarem a tornar financeiramente insustentáveis, aumentou-se e continua a aumentar-se a idade de reforma. Nos EUA os salários estabilizaram desde 1990 e na Alemanha desde há cerca de 10 anos.
Entretanto, em 2009, na sequência da crise financeira de 2008, iniciou-se a crise económica de que ainda se não saiu, com os EUA e os países europeus a sofrerem em 2009 redução do PIB de cerca de 3% a 5%.
Para socorrer o sistema financeiro em crise (os bancos) foram-lhe fornecidos milhões de milhões, com o consequente aumento da despesa pública dos Estados, agravamento do défice entre as despesas e as receitas públicas e aumento de emissões monetárias para fornecer o sistema económico e financeiro de meios de pagamento necessários ao seu funcionamento.
Os países que têm bancos centrais emissores de moeda, nos casos em que a sua economia continua a não sair da crise, ou a sair lentamente, continuam a emitir moeda para estimular o crescimento económico e para reduzir o câmbio das suas moedas, o que lhes dá vantagem no comércio internacional, como os EUA e o Japão.
No caso da União Europeia isso tornou-se mais complexo. Os 16 países que têm por moeda o euro, não tendo banco central emissor de moeda, não podem financiar-se junto do seu banco central. E os que mantêm moeda nacional têm fortes restrições impostas pela União Europeia a recorrer ao seu banco central para financiar as despesas públicas.
A maior economia da União Europeia é a Alemanha que defende política monetária muito estável, isto é sem significativa desvalorização monetária por emissão de moeda, o que é bem aceite pela sua população que ainda não perdeu a memória da descontrolada inflação que sofreu no período entre a Primeira e a Segunda Grandes Guerras.
Na Alemanha, desde há cerca de 10 anos, tem sido seguida política de contenção salarial e de benefícios sociais. Após os significativos desequilíbrios orçamentais em 2009 nos países que têm por moeda o euro, a Alemanha passou a exigir aos países com orçamentos mais desequilibrados (Grécia, Itália, Espanha, Portugal e Irlanda) o regresso a desequilíbrio não superior a 3% já em 2013. Seguiu-se grande subida da taxa dos juros no mercado financeiro internacional exigidos por empréstimos a esses países para financiar a sua dívida pública, sob pretexto de os empréstimos estarem em risco de não pagamento em tempo, o que teve como consequência a descida de cotação do euro. Essa descida fez tornar mais baratos no mercado internacional os bens produzidos nos países do euro, do que passou a beneficiar sobretudo a Alemanha por ter indústria eficiente e feito contenção salarial, com estabilização em euros dos preços dos seus produtos, tornando-os portanto mais competitivos no mercado internacional.
Os países da zona euro com maior dificuldade em reduzir o seu défice público para a meta dos 3% são os que mais dependem do mercado financeiro externo para financiar os seus bancos e o seu défice orçamental. No final do 3º trimestre de 2010 a banca portuguesa devia ao Banco Central Europeu 40.000 milhões de euros, a banca irlandesa 120.000 milhões, a grega 96.000 milhões e a espanhola 430.000 milhões.
Estes países, com a adopção do euro como moeda, beneficiaram dos juros baixos correspondentes à estabilidade monetária. Isso tornou possível em Portugal, apesar de estar impedido de ter défices orçamentais superiores a 3% do produto interno bruto, fazer obras públicas mediante parcerias com privados, que financiaram essas obras obrigando-se o Estado a pagar anualmente prestação para reembolsar o capital investido, os respectivos juros e pagar remuneração considerada adequada; financiar pelos bancos nacionais a construção de habitações; a aquisição a crédito de bens de consumo; aumentar o crédito para os investimentos produtivos e a actividade comercial. No fim do 3º trimestre de 2010 o crédito concedido pelos bancos em Portugal era de 140 mil milhões de euros, o que corresponde a cerca de 87,5% do produto interno bruto, sendo pretexto para dificultar o seu financiamento no mercado financeiro internacional.
Esse crédito facilitado pela adesão ao euro melhorou as condições de vida dos portugueses.
Mas, agora, perante a irredutível posição da Alemanha, que se opõe à emissão de euros pelo Banco Central Europeu para fornecer meios de pagamento a esses países, incluindo Portugal, é imposta a solução de baixar os níveis das remunerações salariais e das prestações sociais, ou sair do euro, o que parece não ser admitido pela opinião da maioria dos cidadãos. Está a ser mais uma etapa para a redução das remunerações salariais dos trabalhadores em Portugal e nos restantes países da União Europeia e dos apoios sociais.
A crise financeira de 2008 não foi criada para alcançar este objectivo, mas a crise económica que se lhe seguiu está a ser aproveitada para isso.
A crise financeira de 2008 e a sequente crise económica de 2009, com as suas consequências, parece dever-se à componente irracional do mercado, em especial do financeiro, com procura por cada aplicador de fundos da máxima remuneração ao mais curto prazo. Quando se convence que certos títulos ou outras aplicações financeiras são bem remunerados, corre a aplicar neles o dinheiro que tem, ou que consegue pedir emprestado por juro mais baixo. Se isso acontece em escala reduzida como ocorreu em Portugal com as aplicações na Torre Alta e na D. Branca, o prejuízo não afecta o sistema. Mas quando acontece em escala global, como na crise de 2008, faz entrar em crise a economia de todo o mundo.
Para reduzir riscos deste tipo haverá que tomar medidas de regulação financeira a nível mundial que visem:
-Manter sistema de informação pública permanente e isenta sobre o grau de risco de aplicações financeiras oferecidas, talvez pelos Bancos Centrais.
-Reduzir a mobilidade financeira por adequada taxa sobre movimentos internacionais de capitais.
-Regulamentar a actividade das agências de notação financeira, impondo-se que justifiquem cada notação e responsabilizando-as pelas que se revelarem inadequadas e ocasionem graves prejuízos.


O Orçamento para 2011 apresentado ao Parlamento português é fortemente restritivo: aumenta a carga fiscal, reduz os salários de parte importante dos cidadãos e diminui os apoios sociais. Segundo as regras económicas, se Portugal tivesse banco central emissor e  possibilidade de estabelecer restrições às importações, ou, se o orçamento não se mantivesse restritivo, haveria inflação com acentuado decréscimo do valor aquisitivo dos salários, ou, se fosse restritivo, haveria decréscimo na procura interna com desaceleração económica se não aumentasse a exportação.
 Mas Portugal não está nessas condições. Integra a União Europeia onde é livre a circulação de bens e o seu banco central não pode emitir moeda, pelo que, sem deixar a União Europeia, não pode o seu orçamento deixar de ser restritivo. Com o orçamento que será aprovado as indústrias portuguesas que usam tecnologias capazes de tornar os seus bens exportáveis poderão, com a estabilização ou redução dos encargos salariais, aumentar as exportações para os países da União Europeia e mesmo para fora dela se o euro não se valorizar significativamente em relação ao dólar e ao iene, embora isso possa não compensar inteiramente o previsível efeito de redução da procura interna sequente à redução do poder de compra que o orçamento proposto em Outubro de 2010 irá causar.
Se isso não acontecer, isto é se não se conseguir aumentar suficientemente as exportações, Portugal poderá sofrer redução do produto interno bruto.
Dado que, integrando Portugal a União Europeia, está aberto à economia global que entrou em crise económica em consequência de crise financeira de 2008, dificilmente escapará à crise económica mundial que está a afectar mais os chamados países desenvolvidos (EUA, União Europeia, Japão, Canadá, Austrália e Nova Zelândia e outros).
As economias emergentes (China, Índia, Brasil, África do Sul e outros) não foram significativamente afectadas pela crise e parece poderem  beneficiar dela. Procurando sair da crise os países desenvolvidos estão a tentar impor-lhes (especialmente à China), mas sem sucesso, a valorização das suas moedas para lhes dificultar a concorrência nos mercados internacionais.
Não conseguindo os EUA e o Japão impor à China a valorização da sua moeda estão a optar por emitir muito mais moeda para levar à desvalorização das suas, aumentando a competitividade no mercado internacional e reduzindo os salários dos seus trabalhadores e as prestações sociais a que têm direito pela diminuição do poder de compra da moeda. Os países da zona euro, por imposição da Alemanha, estão a optar por manter o valor do euro, o que beneficia os detentores de riqueza em capital financeiro, mas irá prejudicar a competição no mercado externo.
Os próximos desenvolvimentos da crise económica e das suas consequências, além da redução salarial e de outros benefícios sociais, não são facilmente previsíveis, mas uma delas poderá vir a ser a perda a prazo pelo dólar norte-americano do grande e hoje injustificado privilégio privilégio de ser, desde o fim da Segunda Grande Guerra, a única moeda de pagamento internacional, apesar de, em 1971, o governo norteamericano de Nixon ter unilateralmente posto fim à convertibilidade do dólar por ouro à taxa de 35 dólares por onça, conforme o estipulado nos acordos de Bretton Woods, o que poderá passar pela admissão da moeda de países com produto interno bruto quantitativamente alto ao estatuto de meio de pagamento internacional mediante candidatura junto do Fundo Monetário Internacional de cada país interessado e o cumprimento da obrigação de não emissão de moeda acima de certa percentagem do seu produto interno bruto, o que tudo terá que ser verificado e controlado pelo Fundo Monetário Internacional depois de democratizado com perda pelos EUA do seu actual privilégio de direito de veto.
A superação da crise económica que se seguiu à crise financeira de 2008 poderá estar longe. Portugal, integrando a União Europeia e consequentemente a economia global, não sairá definitivamente desta crise enquanto ela não for globalmente superada.
A crise está a ser usada para continuar a reduzir os níveis salariais e de apoios sociais de que beneficiaram os trabalhadores na sequência da tomada do poder na Rússia em 1917 pelo Partido Comunista, da grande depressão económica de 1929, do longo período da Guerra Fria desde 1946 até ao colapso da União Soviética e dos regimes políticos de quase todos os países socialistas no fim da década de 1980 e início de 1990.
A redução poderá vir a ser mais acentuada em consequência da concorrência económica com a China, onde os trabalhadores têm bom nível de instrução, hábitos de disciplina no trabalho mas baixo nível salarial, não beneficiando dos mesmos apoios sociais que nos países europeus considerados desenvolvidos.
Mas essas reduções salariais e de benefícios económicos não podem continuar sem limite, que o sistema económico capitalista sabe que precisa que os trabalhadores tenham suficiente poder de compra para poderem adquirir o que as empresas produzem.
O nível em que vai parar a redução salarial e dos apoios sociais dependerá da capacidade de luta dos trabalhadores e da lucidez do poder político dos países capitalistas, a que não convém deixar agudizar as contradições a tal ponto que ponha em risco a estabilidade do poder.
Outra questão é o que se irá seguir no permanente e inevitável confronto entre os interesses dos trabalhadores e os dos grandes detentores do capital. Isso pode ser tema de outra reflexão.                         

segunda-feira, 10 de janeiro de 2011

A INTELIGÊNCIA É CAPACIDADE HUMANA E DE TODOS OS ANIMAIS

A inteligência é capacidade humana e de todos os animais, podendo o  princípio da inteligência  estar em tudo o que existe.
António Bica

Por inteligência tem-se entendido a capacidade humana de raciocínio abstracto, isto é a possibilidade do cérebro figurar uma ou mais  situações ou realidades imaginadas e de as relacionar com o observado no mundo exterior, ou entre si, capacidade de que resulta a consciência, isto é a auto-percepção da individualidade do correspondente ser.  A capacidade de raciocínio abstracto, usada para melhor solucionar os problemas de sobrevivência que se  vão pondo na vida de cada ser,  incluindo através do melhor entendimento do mundo, o que para isso é  necessário ou útil, porque impele os humanos a observar todo o mundo exterior, leva-os a raciocinar sobre ele procurando explicar a sua origem e o seu funcionamento.  Essa capacidade era entendida como exclusiva dos humanos e pelas religiões considerada  consequência e prova da sua criação divina.
Hoje, por observações cuidadosas e experiências, é certo que outros animais, especialmente  macacos, são capazes de raciocínio abstracto, embora não tão complexo como o dos humanos, o que, nomeadamente, lhes possibilita a produção e o uso de instrumentos, mesmo que rudimentares, para  melhor resposta aos desafios que a natureza (incluindo os outros animais) lhes põe.
 Mas  inteligência não é apenas capacidade de raciocínio abstracto. Todos os animais, perante cada  problema que enfrentam (ameaça, frio, chuva, fome, sede e outros), revelam capacidade para tentar superá-lo, lutando ou fugindo, procurando abrigo, buscando alimento ou água.  Esses comportamentos  são inteligentes, embora não resultem de raciocínios  abstractos, isto é de prévia e antecipada figuração de cada problema e da mais adequada resposta a dar-lhe, incluindo antecipada reunião dos meios (nomeadamente instrumentos) para o efeito. A generalidade dos animais parece ser apenas capaz de agir com inteligência  quando os problemas que precisa de solucionar se lhe põem. Se um animal não tiver capacidade para os resolver, a sua vida será curta e não deixará descendência. Assim a selecção natural estimula o uso da inteligência. Os seres que melhor a usarem  maior capacidade têm de sobreviver por mais largo tempo e consequentemente de deixarem descendência.
A inteligência de cada ser animal é gerada em órgão específico, o cérebro, que dispõe de meios de comunicação com as restantes partes do respectivo corpo para lhes transmitir comandos  e receber informações, incluindo dos efeitos sobre elas do mundo exterior.
Do referido resulta que inteligência é a capacidade de cada animal, incluindo o homem,  para dar a melhor resposta a cada um dos problemas que continuamente enfrenta.  Em síntese pode dizer-se que inteligência é a capacidade de cada animal para escolher o melhor para si.
As pessoas de boa formação moral,  perante esta definição de inteligência, tendem a reagir como sendo justificação de egoísmo. Mas não é. Muitos animais,  especialmente os humanos, são seres gregários que precisam da colaboração dos outros para, em primeiro lugar,  se reproduzir, e, depois,  melhor viver, isto é melhor defender a sua existência.  Por isso, cada um, a par de pulsões para  defesa da sua individualidade, o que é necessário para se manter vivo, sente pulsões para bem se relacionar com os outros, o que é necessário para que a espécie se reproduza e para  defesa da sua individualidade por cooperação.
É necessário o justo equilíbrio entre os comportamentos de cada ser para a necessária defesa da sua individualidade  e os adequados à  indispensável cooperação com  os outros para se assegurar a reprodução e a melhor defesa colectiva, que é também defesa de cada indivíduo.  Cada animal nasce geneticamente programado para manter esse equilíbrio. Se houver desequilíbrio, o tempo de vida do indivíduo tende a encurtar-se e assim a selecção natural a eliminá-lo.
Também cada planta procura o melhor para ela, embora não disponha de órgão capaz de centralizar informações das suas diferentes partes e, através delas, do mundo exterior, e de as processar e emitir comandos com base nelas. Mas as suas  partes são sensíveis ao mundo exterior, nomeadamente à luz, ao frio, à água, e, por meio de compostos químicos orgânicos complexos que produz, assegura a comunicação entre elas.
 Por isso, quando a semente germina, as suas raízes procuram a terra e as folhas o ar e a luz. Esse comportamento não é de natureza estrutural distinta do do animal que procura comida para se alimentar ou abrigo para se proteger das intempéries. E, se uma planta nasce sem capacidade para encaminhar as suas raízes para a terra ou as folhas para o ar e a luz, a selecção natural  eliminá-la-á.
Os chamados seres inanimados, embora nada haja que se não mova, tudo girando e fluindo, que o movimento parece ser constante universal de que resulta o tempo, como interagem?  Observando, vemos que os seres que designamos por não animados o fazem da forma que melhor a eles parece adequar-se, isto é mais lhes convém:  Os corpos celestes giram entre si segundo leis constantes; os compostos químicos cristalizam sempre sob  certas formas; os elementos simples (hidrogénio, oxigénio, carbono e os outros) associam-se  de modos sempre iguais se as condições forem as mesmas; os protões, os neutrões e os electrões organizam-se entre si sempre segundo formas certas;  os elementos  mais simples, embora constituam realidades ainda mal compreendidas, parece obedecerem ao mesmo tipo de constâncias.  Assim agem porque de outro modo deixam de ser o que são.
O que os faz assim agir, procurando a melhor organização para eles, não será  princípio inteligente universal comum a tudo o que existe?
Se assim for, a inteligência humana  corresponderá ao constante avanço organizativo  de tudo o que existe, complexificando o princípio inteligente universal. Tudo o que existe, ao tornar-se progressivamente cada vez mais complexo, potenciará esse princípio inteligente universal até capacitar, pela inteligência abstracta, os humanos  a debruçarem-se sobre si mesmos e o universo de que fazem parte.
Outra questão é se os humanos alguma vez alcançarão o pleno conhecimento do universo, isto é de tudo o que existe.  Não parece possível, que, sendo os humanos parte do universo, isso  estará fora do seu alcance. Compreender implica abarcar, o que os humanos parece que nunca poderão conseguir  com o infinito universo de que são ínfima parte.  À parte parece estar vedado compreender, abarcar o todo.
Poder-se-á considerar que este entendimento da inteligência corresponde à aceitação de deus imanente, isto é de deus inteligência do universo, pois, sendo a suprema complexidade, englobando  a complexidade de todos os seres, incluindo os humanos, corresponder-lhe-á necessariamente a suprema inteligência que tudo compreende geradora da máxima auto-consciência, concepção que se contrapõe-se à de deus transcendente independente do universo, dele criador e nele presente, que e é a das religiões monoteístas.
A ideia de deus imanente não parece aceitável, que isso implicaria o conjunto do universo ser dotado de  inteligência distinta da de cada ser e haver nele órgão específico  produtor de consciência e  inteligência  e mecanismos capazes de fazer chegar os seus comandos a cada parte da sua infinitude, que, pelo que se pode inferir do que se observa, não existem.
A ideia de deus transcendente, isto é pré-existente ao universo, dele criador e distinto, responde à necessidade humana, que resulta da capacidade de raciocínio abstracto, de explicar o mundo exterior e consequentemente o universo. Porque os humanos, sendo ínfima parte dele, são incapazes de o compreender, embora o vão entendendo cada vez mais, em vez de modestamente aceitar essa realidade, tentam explicá-lo figurando a existência de deus como dele criador e aceitando a sua incapacidade de explicar deus.
Os defensores da ideia de deus transcendente argumentam com a necessidade de haver para os humanos regras de conduta por ele ditadas a certos privilegiados para assegurar a harmonia entre eles. Além de não ser racional a ideia de deus privilegiar alguns homens com a sua comunicação, mesmo que indirecta (a melhor teologia defende que deus não comunica directamente com os homens), entendendo-se o universo criado por deus, é ele regido pelas melhores leis, bastando por isso aos humanos, para assegurar a harmonia,  procurar progredir no conhecimento delas.  Por outro lado, tendo deus necessariamente criado o universo com as melhores leis, isso exclui a possibilidade de milagres entendidos como excepção às leis naturais por intervenção de deus, pois não podem deixar de ser as melhores, portanto insusceptíveis de correcção.
A capacidade humana de raciocínio abstracto é a geradora da ideia de deus imanente ou transcendente. O avanço dos humanos no progressivo conhecimento do universo, embora modestíssimo como é e seguramente sempre será, está a levá-los a progressivamente aceitar a sua natural incapacidade para completamente o compreender sem deixar de sempre querer progredir no caminho do seu conhecimento.