terça-feira, 5 de abril de 2011

A propósito de viagem a Cuba

Considerações sobre Cuba a propósito de viagem em 2007 e das anunciadas reformas políticas e económicas


António Bica



Em viagem a Cuba em 2007 pareceu-me, pelo que vi, li e falei com habitantes, que o país resolveu no essencial e a nível considerável bom os problemas de educação e saúde, que são gratuitos para toda a população e têm qualidade. Os crimes violentos são raros, havendo razoável segurança nas ruas, mesmo de noite.
A cidade de Havana tem 2,3 milhões de habitantes. O alojamento é encargo pequeno (até 5% do salário mensal) e as necessidades básicas de alimentação são asseguradas por quota alimentar (por pessoa) vendida a preço bastante baixo.
Asseguradas as necessidades básicas da população (alojamento, alimentação, saúde e educação) não restam aos cubanos grandes recursos para outras despesas. São poucos os carros e, dos que há, um bom número tem 20 ou 30 anos. Apesar disso a frota de taxis parece suficiente. Muitas casas aparentavam pelo exterior precisar de pintura e de reparação.
A impressão colhida é de sociedade remediada e fraterna com as necessidades básicas resolvidas a nível muito mediano, sem grandes desníveis. É grande o contraste com o que se conhece da generalidade dos países da América Latina, onde muitas crianças vivem ao abandono, há muita criminalidade violenta e a riqueza e a ostentação dos bairros das elites se exibe ao lado da flagrante miséria das favelas, dos morros, dos bairros de lata.

A Revolução Cubana foi feita na passagem da década de 1950 para a de 1960, há mais de 50 anos. A maioria da população portuguesa, incluindo as camadas mais instruídas, não tem memória do país que era Cuba então. Governada, ou, melhor, desgovernada por Fulgêncio Baptista, ditador que disponha do país como se fosse coutada sua, era como que o quintal das traseiras dos EUA, que estão a poucas dezenas de milhas a norte, e dominavam a economia e a política cubanas. A Máfia norte-americana tinha aí, no hoje nacionalizado Hotel Nacional, o seu quartel-general e grande casino, onde mandavam os seus principais cabecilhas, entre eles o conhecido Lucky-Luciano. O povo vivia na miséria, vendendo, se tinham quem os contratasse, por baixos salários a sua força de trabalho nos campos de cana de açúcar aos norte-americanos e as suas filhas a prostituir-se na cidade de Havana.
A Revolução restituiu a dignidade ao povo cubano e foi chama animadora para que a América Latina iniciasse o lento caminho da emancipação dos EUA.

Apesar dos Estados Unidos da América do Norte desde então boicotarem quanto podem a economia cubana, o país resiste. A preocupação com a justiça social do regime político e a forte base ética assente na vida modesta dos dirigentes legitimam o regime aos olhos da maioria da população. Mesmo em períodos difíceis, como o que se seguiu a 1990 com o colapso dos países socialistas europeus, tendo o produto interno bruto caído então 35%, a unidade à volta dos dirigentes políticos não foi destruída. A direcção política soube dar resposta às graves dificuldades económicas, abrindo então ao investimento estrangeiro com empresas em parceria com o Estado Cubano sendo metade do capital de cada parte e admitindo que a população crie pequenas empresas familiares que não contratem outros trabalhadores. A economia cubana retomou com essas medidas o crescimento, procurando a política cubana manter o princípio de não haver cubanos a comprar  força de trabalho a outros cubanos. Por essa razão o regime não autorizava até agora que as empresas de cubanos recorram a outro trabalho que não o familiar.

Esta restrição tem impedido que os cubanos com maior iniciativa e criatividade impulsionem o desenvolvimento económico da sociedade. Pode estimar-se que numa sociedade cerca de 10% da população tem boa capacidade de iniciativa, de criatividade e de gestão, enquanto percentagem semelhante, no extremo oposto, não tem capacidade para governar a sua vida e produzir para as suas necessidades precisando de receber apoio da sociedade. Os restantes, cerca de 80%, são normais trabalhadores, muitas vezes excelentes, desde que bem enquadrados em organização produtiva. Dificultar que num país os cerca de 10% da sua população com criatividade, capacidade de iniciativa e de gestão desenvolvam as suas capacidades em actividades diversas, nomeadamente económicas, desde que respeitadas regras básicas de justiça, solidariedade social e equidade, faz diminuir a eficiência geral da sociedade em todos os campos, em especial no económico. A compra de força de trabalho e a consequente possibilidade de exploração económica, não pode ser erigido em tabu quando se pretende construir uma sociedade mais justa. Por medidas legislativas e outras é possível estabelecer normas e práticas que garantam os direitos dos trabalhadores e a observância da regra socialista básica de justiça: a cada um segundo o seu trabalho, sem deixar de se prestar o necessário apoio aos que dele necessitam de acordo com o nível geral de riqueza da sociedade.

Com a separação, no fim da Segunda Grande Guerra, da Alemanha em dois Estados, um, a República Democrática Alemã, organizado segundo princípios tidos por socialistas, outro, a Alemanha Federal, segundo as regras do capitalismo, tornou-se claro que grande número de trabalhadores da República Democrática Alemã teria ido trabalhar para a Alemanha Federal, onde os salários eram mais elevados, se não tivessem sido estabelecidas barreiras dificilmente transponíveis na fronteira entre os dois Estados, incluindo na cidade de Berlim (o chamado muro de Berlim).
Impõe-se concluir que a média dos trabalhadores prefere ganhar mais, mesmo sendo explorada, do que, hipoteticamente não o sendo, ganhar menos.

Há, por outro lado, que reflectir se é possível com eficiência, num Estado, regular centralmente toda a vida social, cultural e económica como se tentou sem êxito na União Soviética e nos países do “socialismo real”.
Uma sociedade humana é demasiado complexa para poder ser entendida por uma parte de si mesma em termos de essa parte ser capaz de dirigir o seu evoluir e funcionamento sem contradições.
Até agora as sociedades humanas evoluíram de forma não dirigida. O seu progresso tem resultado de leis que desde o século 18 se têm procurado determinar. Mas estamos longe de conhecer todos os complexos mecanismos do funcionamento e do evoluir das sociedades humanas e provavelmente nunca se conhecerão completamente, não obstante o contínuo progresso nesse sentido.
É desejável que as sociedades evoluam sem roturas causadoras de grandes prejuízos e sofrimentos.
Não sendo possível determinar completamente o evoluir e o funcionamento das sociedades por não conhecimento suficiente da sua complexidade, a sua organização terá fundamentalmente que procurar facilitar os mecanismos de autocorrecção económica e social de maneira que as alterações se tendam a processar de modo gradual e imediato, ou quase imediato, com o mínimo de intervenção da autoridade pública e consequentemente sem roturas, que sempre são causadoras de sofrimento.
A autoridade pública terá que intervir fundamentalmente para, pela investigação, aprofundar o conhecimento das leis que regulam o funcionamento e o evoluir das sociedades e, na base desse conhecimento, aperfeiçoar continuamente os mecanismos sociais de autocorrecção. Só nos casos em que os mecanismos de autocorrecção não resolverem disfunções sociais e económicas é que se tornará preciso intervir para procurar resolvê-las e introduzir novos mecanismos de autocorrecção que, no futuro, solucionem o mesmo tipo de contradições.

Uma sociedade humana é assimilável a corpo humano vivo. À inteligência, que é a função superior do corpo, não compete regular cada uma das suas múltiplas e complexas funções, cujas leis a inteligência em grande parte desconhece. A função da inteligência em relação ao corpo é a de procurar resolver os problemas de funcionamento e desenvolvimento que os automatismos biológicos não são capazes de solucionar. A inteligência de cada homem não se ocupa do funcionamento dos diferentes órgãos do corpo (coração, aparelho digestivo, pulmões, rins, glândulas, etc.). Se, por exemplo, for necessária água no organismo, desencadear-se-á alarme da sede que vai obrigar a inteligência a perceber que tem que lhe ser fornecida água. O coração funciona sem que a inteligência se ocupe dele. Mas se surgirem dores provenientes do seu deficiente funcionamento, a inteligência actua de modo a que haja intervenção (remédios, dieta, etc.).

A compra por um indivíduo a outro da sua capacidade de trabalho não é necessariamente fonte de injustiça inaceitável, se for regulada por normas e práticas capazes de assegurar o razoável equilíbrio das prestações mútuas.
O que não é aceitável é o imposto pelas grandes empresas transnacionais sob o comando do governo dos Estados Unidos da América do Norte: O neo-liberalismo global está a tornar os países ricos cada vez mais ricos e os pobres cada vez mais pobres, e, nuns e noutros, os indivíduos ricos cada vez mais ricos enquanto a miséria, o crime, a insegurança e a poluição crescem.
Cuba está a procurar construir uma sociedade alternativa à dominante no mundo de hoje. São de saudar a sua vontade e a sua determinação. O caminho que está a seguir merece reflexão e sempre ajustamentos, que o que hoje é solução adequada com o desenvolvimento posterior deixada de o ser.


Em 2010 o governo cubano anunciou projecto de reforma do seu sistema económico, prevendo o alargamento da actividade privada  a significativo número de sectores da economia.
Prevê-se que grande número de trabalhadores do Estado opte por trabalhar em actividades económicas privadas.  É de esperar que, se a transição for razoavelmente planeada e posta em prática sem roturas sociais significativas, a economia cubana entre em apreciável desenvolvimento, porque a generalidade  dos cubanos beneficia de bom nível de ensino com formação profissional e todos beneficiam de  serviços de saúde de qualidade. Como se sabe,  o conhecimento e a saúde são dos principais factores da produtividade do trabalho.
Não é possível prever com segurança como a reforma vai ser posta em prática nem o grau de adesão pelos trabalhadores do Estado à passagem à actividade privada.  Isso vai depender da perspectiva de cada um sobre o benefício que terá ao deixar o trabalho no Estado e passar para a actividade por conta própria ou de outro  e do que vir que vier a suceder aos que primeiro se aventurarem a deixar a segurança do sector público da economia pelo privado. Se a reforma for bem planeada e posta em prática, é possível que Cuba venha a entrar em ciclo económico de desenvolvimento acelerado.


Se a reforma anunciada for bem sucedida, é previsível que Cuba inicie também processo de mudanças constitucionais que libertem a sociedade cubana da tutela de quem fez a revolução cubana e foi capaz de a consolidar.
Entende-se que os revolucionários que foram capazes dessa tarefa em condições tão difíceis de bloqueio económico, que persiste, e de invasão militar pelos EUA  receiem,  nessas condições que em grande parte subsistem,  pôr fim à tutela  sobre a política cubana. Mas há que ter em conta que nada é eterno, nada fica para sempre; a mudança é, em tudo, lei universal. A geração que fez a revolução inevitavelmente vai morrer.  A melhor garantia da salvaguarda dos valores da revolução cubana do início da década de 1960 é entregar ao povo, sem tutela, a liberdade de, por voto secreto, universal e periódico, eleger quem, por período certo e limitado, deve exercer o poder político. O povo cubano, que é dos mais instruídos do mundo, se se sentir viver em sociedade com economia em desenvolvimento,  dificilmente deixará, nessas condições, fugir o poder político das suas mãos. E o governo dos EUA, não obstante a sua vontade, que não abandonará tão cedo, de dominar politicamente Cuba, terá grande dificuldade em a dominar politicamente.
Não se pode deixar de ter em conta que a democracia é invenção política de sociedades com  razoável nível de riqueza gerada pelo comércio na antiguidade clássica. Tendeu a apagar-se depois quando o nível de riqueza diminuiu  fortemente. Ressurgiu com o incremento da riqueza proporcionado pelo desenvolvimento industrial e o avanço da instrução necessária a essa produção, e está a progressivamente a alargar-se à medida que  o desenvolvimento da riqueza se alarga pelo mundo.
Cuba tem população com elevado nível de instrução. Falta-lhe criar as condições para que tenha razoável nível de riqueza. Os revolucionários cubanos ainda vivos parece estarem, com as reformas económicas anunciadas, a querer que se criem as condições para que o povo cubano agarre o destino político do seu país nas mãos. Espera-se que sejam bem sucedidos, que, além do mais, a esse povo se deve o significativo  avanço dos países da América Latina para a emancipação dos EUA, a libertação do povo angolano do controle político pelo regime sul africano, a  independência da Namíbia e a libertação da África do Sul do regime de apartaide.

É experiência política a seguir com atenção, que, depois do colapso da União Soviética,  dos outros países do chamado socialismo real e da opção da China pelo sistema capitalista sob tutela do seu Partido Comunista, torna-se necessário procurar teorizar e delinear novo modelo para sociedades humanas mais justas e solidárias.

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